sábado, 10 de outubro de 2020

CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA

 

(Paradoxalmente, quando o mundo comunista desabou nas suas origens e as utopias do contraponto ao capitalismo perderam força pelo incómodo da evidência, multiplicaram-se as interpretações consequentes sobre os rumos que marcam o seu futuro, na sua maioria rumos pouco recomendáveis. Ainda não tinha trazido a este blogue uma dessas interpretações mais demolidoras e merecedoras da nossa atenção mais crítica, The Age of Surveillance Capitalism escrita por Shoshana Zuboff.)

Desde a importante literatura das variedades do capitalismo até ao best-seller de Thomas Pikett já secundado pelo seu Capital e Ideologia emergiu uma vasta gama de interpretações sobre os rumos contraditórios do capitalismo que o podem conduzir a formas e variedades incompatíveis com a democracia. Essa incompatibilidade a manifestar-se em concreto seria uma valente machadada na ideia de que democracia política e democracia económica devem ser vistas como faces da mesma moeda. Até parece que o desabamento do comunismo a leste e os problemas do comunismo romântico (Cuba, por exemplo) e o empalidecer das utopias associadas abriram a imaginação e rigor analítico aos estudiosos do capitalismo. Parece, assim, que a revelação da inexistência de alternativas conduziu os intelectuais e cientistas sociais e políticos a concentrarem-se no futuro do que nos resta e na melhor maneira de corrigir as suas mais perigosas derivas.

Ainda não se tinha proporcionado a oportunidade (isto de comentar o quotidiano tem custos elevados pelo que se perde de refletir sobre o que vale a pena e está menos dependente da espuma dos dias) para trazer a este espaço a obra de Shoshana Zuboff acima referida.

Para percebermos a ideia de capitalismo de vigilância, vale a pena começar por algumas definições que a autora americana (Professora Emérita de Harvard) dedica ao tema para clarificar ao que vem:

  • Uma nova ordem económica que reclama a experiência humana como uma matéria prima de custo zero para práticas ocultas de extração, predição e vendas;
  • Uma lógica económica parasitária na qual a produção de bens e serviços está subordinada a uma nova arquitetura global da modificação de comportamentos;
  • Uma mutação vampírica do capitalismo marcada por concentrações da riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história humana;
  • O quadro fundacional de uma economia vigiada;
  • Uma significativa ameaça à natureza humana no século atual como o capitalismo industrial o era para o mundo natural nos séculos dezanove e vinte;
  • A origem de um novo poder instrumental que assegura o domínio sobre a sociedade e representa surpreendentes desafios para a democracia de mercado;
  • Um movimento que aspira impor uma nova ordem coletiva baseada na certeza total;
  • Uma expropriação dos direitos humanos críticos que é melhor compreendida como um golpe vindo de cima: o derrubar da soberania popular”.

Perderam o ar? Eu também.

E, nessa mesma linha, não hesito e cito o que Zuboff nos apresenta como reflexão prévia sobre o que estamos em via ou de poder perder acaso continuemos distraídos, o sentimento de regressar ao nosso lar ou de construir um novo para aí depositar as nossas esperanças. “O desaparecimento do sentimento de casa provoca um sentimento insuportável. Os Portugueses têm uma palavra para este sentimento: saudade, uma palavra que é invocada para captar as saudades de casa e a longa separação da terra natal entre os emigrantes ao longo dos séculos. Hoje, as disrupções do século XXI transformaram estas ansiedades e distâncias estranhas da deslocação em que cada um de nós está mergulhado”.

É sempre cativante quando um dos nossos traços antropológicos mais estruturais (não por acaso também cantado por Cesária para além das incursões do fado por essa matéria) é recordado. Mas é com este requiem pelo sentimento de regresso a casa ou de a construir que Shoshona Zuboff começa por situar o que está oculto na sociedade digital e na agora tão badalada transformação digital. Associar o contraponto casa versus exílio à sociedade digital é uma abordagem brilhante, já que permitirá à investigadora americana ir bem fundo nas transformações comportamentais visadas pela revolução digital em linha de associação permanente com outros traços marcantes da evolução do capitalismo atual, como a concentração da riqueza, a explosão da ganância que precipita o negacionismo, a proliferação de autoritarismos e democracias iliberais, as derivas de utilização da internet das coisas e dos big data e da inteligência artificial, a dança dos algoritmos que nos condicionam o consumo, enfim um conjunto diversificado de maleitas do capitalismo que fazem duvidar da sua sanidade.

Se Schumpeter fosse vivo talvez fosse conduzido a escrever um novo e monumental Capitalismo, Socialismo e Democracia. Schumpeter não era seguramente um fervoroso socialista (proximamente acusarei neste espaço a publicação de um grande artigo de David Glassner sobre alguns aspetos biográficos e de personalidade do economista que nos marca ainda a nossa perceção e entendimento da inovação). Mas numa época em que o socialismo ainda não tinha sido derrubado nas suas utopias, Schumpeter defendia em nome do seu rigor intelectual que a degenerescência da concentração empresarial e da própria sociedade iria minar o que ele considerava o principal fator de dinamismo das sociedades, as condições de nascimento e formação de novos empresários inovadores. Por isso, se hoje vivesse, talvez fosse mais fundo na sua crítica endógena do capitalismo e das suas derivas, tão acentuadas que poderiam colocar uma passadeira vermelha ao socialismo. A história mostra-nos que frequentemente as grandes utopias são destruídas a partir de dentro.

A obra de Shoshana Zuboff traz-nos argumentos poderosos para estarmos mais atentos a esse devir histórico.

É mais uma vez uma obra que brota da experiência americana e da degenerescência do seu modelo de capitalismo. O fenómeno Trump e as mais de 210.000 mortes que os EUA apresentam como cartão de visita do que não se recomenda em termos de gestão de uma pandemia são de certo modo um produto do que a monumental obra de Shoshona Zuboff nos anuncia e em função da qual nos desafia a ser mais críticos e interventivos na criação do nosso futuro. Sou dos que penso que, por via do seu comportamento eleitoral, os cidadãos são tão culpados do desgoverno como os que o protagonizam. A ingenuidade de desculpabilizar e desresponsabilizar eleitores pelos atalhos mais manhosos da democracia pode-nos sair caro.

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