(A comunicação no continente dedica muito pouca atenção às autonomias regionais, muitas vezes não a entende, não raras vezes desdenha da insularidade e até por vezes tende a considerar as sociedades regionais como um conjunto de privilegiados ameaçando a coerência nacional. Sou frontalmente contra essa perceção e aprecio imenso quando as autonomias confirmam que existem e que estão de boa saúde...)
Devo declarar o meu conflito de interesses nesta matéria, que não me impede de manter a distância crítica conveniente. Tenho trabalhado imenso nos Açores e na Madeira, com algumas intermitências que são muito comuns no trabalho de consultoria e que constituem uma espécie de condição de “etiqueta respiratória” de arejamento do mercado, permitindo a diversidade e a multiplicação de pontos de vista sobre aqueles territórios. Tenho por isso uma perceção bastante próxima da evolução que as administrações públicas regionais têm experienciado ao longo da afirmação do processo autonómico. Testemunho, por exemplo, o enorme apreço que as instituições comunitárias alimentam quanto a estas autonomias, aqui e ali apimentado com alguma incompreensão das particularidades destes territórios. A qualificação da administração é progressiva, com algum rejuvenescimento e tenho acompanhado de perto, por exemplo, a tentativa dos Governos Regionais construírem sistemas regionais de inovação mais robustos praticamente a partir do zero, com desigual participação e alguns elementos penalizadores que brotam das Universidades regionais. Imaginem entre outras dimensões as dificuldades de construir uma trajetória tecnológica regional nos Açores sem formação superior na área das engenharias, como acontece naquela região autónoma.
Do ponto de vista do tema que fundamentalmente me interessa, não no plano profissional mas na perspetiva mais académica, a questão do fortalecimento da iniciativa privada constitui de facto o principal fator crítico dos modelos de desenvolvimento das autonomias, à qual poderíamos talvez adicionar a necessidade de municípios mais robustos (que é normalmente um problema em autonomias regionais com governação robusta e que mostra que a regionalização tem também os seus problemas e derivas). Existem múltiplas razões para a debilidade dos tecidos empresariais regionais:
- Os custos de contexto associados à natureza de ultraperiferia e, no caso dos Açores, da dupla penalização do estatuto de território longínquo e da fragmentação que é dada pela dimensão de arquipélago;
- A exiguidade do mercado interno;
- A grande dependência face ao mercado do continente, que continua a representar o principal mercado “externo” das duas autonomias, dependência que é fortemente acentuada em termos de cadeias logísticas e de distribuição dos produtos regionais;
- A debilidade do tecido associativo empresarial;
- A fraca propensão para a internacionalização extra continente português;
- O círculo vicioso declarado entre a debilidade do tecido empresarial e a atração/fixação de recursos humanos qualificados.
Os governos regionais das duas autonomias têm procurado combater este nó górdio do desenvolvimento regional com uma forte intervenção e apoio públicos. Essa intervenção tem evoluído essencialmente por dois caminhos: (i) explorando, por um lado, a crescente atenção dos fundos europeus ao tema da competitividade empresarial e alocando recursos significativos aos sistemas de incentivos e (ii) promovendo entidades públicas atuando nos domínios em que a debilidade da iniciativa empresarial se faz mais sentir (internacionalização e intensificação da atividade colaborativa entre as empresas e a investigação científica numa lógica de inovação).
O problema é que a debilidade e pequena dimensão do tecido empresarial se projetam frequentemente na fraca procura desses apoios. E, não raras vezes, a emergência das agências públicas nem sempre se reduz à intervenção em falhas de mercado, ocupando domínios em que a debilidade empresarial e associativa convida à intervenção pública, mas em que esta última acaba por cair na armadilha viciosa de inibir a própria iniciativa empresarial. É um tema chave da política de desenvolvimento nas duas autonomias regionais. Os períodos de programação sucedem-se sem que o constrangimento da debilidade empresarial e associativa mostre sinais de progressos robustos. Não é difícil imaginar que este contexto, posteriormente alimentado pela questão da política e da alternância democrática, se transforme numa matéria crucial para as condições facilitadoras do desenvolvimento económico.
Arriscar-me-ia a afirmar que esta questão de grande importância para a compreensão mais conceptual dos constrangimentos ao desenvolvimento destes territórios se transforma depois em matéria central do combate político.
Confesso que não dediquei a devida atenção à antecâmara das eleições do passado domingo nos Açores. Mesmo em cima da meta eleitoral, uma notícia que saiu no Público sobre a atividade empresarial do líder do PSD candidato às eleições cheirou-me a esturro. Não é normal que mesmo em cima do dia das eleições surja este tipo de notícias, não fazendo a mínima ideia, confesso, da sua veracidade ou conteúdo. Mas aquela notícia mexeu com a minha intuição. Percebi que os resultados das eleições não iriam ser pacíficos e não me enganei.
A verdade é que o Partido Socialista perdeu a maioria absoluta mas o facto principal não é esse. As condições de governabilidade alteraram-se profundamente e, ao contrário do que muita gente pensaria, a fragmentação política num contexto de polarização chegou também aos Açores. A direita diversificou-se, as emergências políticas no continente, Chega, PAN e Iniciativa Liberal chegaram à região e o PSD parece que finalmente ressurgiu do longo interregno depressivo em que, depois dos bons tempos políticos de Mota Amaral e apesar do voluntarismo de personalidades marcantes como Berta Cabral, esteve mergulhado. Na noite eleitoral, fiquei petrificado com a falta de intuição política daquela gente que se pavoneou diletantemente pelas emissões, não percebendo que a continuação da governação PS na região não eram favas contadas. Tudo isto com pandemia e mesmo algum reforço de participação eleitoral, a partir não esquecendo de valores altos de abstenção.
E, de repente, como o dizia alguém hoje nos jornais desta manhã, os Açores mostraram que existem para a luta política e que com elevada probabilidade vão transformar-se num laboratório da governabilidade à direita e também da governabilidade à esquerda com sérias cedências a forças de outros espectros ideológicos e partidários. Por muito que me incomodem alguns cenários de governabilidade à direita, encaro tudo isto como uma prova de vitalidade da autonomia regional.
Não me atrevo a vaticinar sobre os rumos concretos que a governabilidade possível vai assumir. Mas tenho a intuição que o problema conceptual da debilidade da iniciativa empresarial que atrás desenvolvi como um tema fulcral da minha atenção vai estar no coração dos bastidores dos complexos e duros processos de negociação que estarão agora a acontecer. A democracia por vezes prolonga impasses, vejam-se, por exemplo, os problemas da governabilidade em Espanha. Mas quase sempre clarifica as questões que estavam ocultas e que o voto popular tem o condão de ressurgir.
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