(Uma reflexão perturbadora de Daniel Innerarity, filósofo espanhol autor de Pandemocracia. Una Filosofia de la Crisis del Corovavirus, uma das mais recentes reflexões sobre esta longa hibernação forçada, coloca-nos perante um outro olhar sobre o poder e o seu significado (link aqui). A situação política espanhola está pelos vistos a transformar-se em matéria de investigação, mas a reflexão não deixa de ser útil e pertinente quando aplicada cá ao burgo.)
Sabemos que a fragmentação política tem conduzido vários países a longos períodos de procura de soluções minimamente estáveis de governação, que permitam respostas adequadas à dimensão dos desafios que a ela se colocam. Esses longos períodos de procura de soluções de governação prolongam-se depois noutros momentos para os quais é necessário encontrar maiorias que, por vezes, as soluções encontradas não permitem, como o é a aprovação do Orçamento de Estado. Na Europa, vários casos ilustraram esta nova dimensão da ação política, como aconteceu na Alemanha, na Bélgica talvez a mais longa de todas, em Itália e mais recentemente em Espanha. A coligação no poder PSOE-PODEMOS-IZQUIERDA UNIDA adicionada de acordos em geometria variável com governos nacionalistas tem suado as estopinhas e dado cabo da paciência dos espanhóis em tempos difíceis de pandemia e do seu ressurgimento. No contexto espanhol em ebulição, a estabilidade governativa em algumas das suas Comunidades Autónomas, com a Galiza à cabeça, é uma exceção.
A reflexão de Daniel Innerarity incide sobre uma das dimensões mais visíveis desta efervescência política, a total incapacidade de fazer acordos tendo em vista a resolução de problemas concretos das populações e a ultrapassagem dos impasses políticos gerados pela já referida fragmentação política:
“(…) A minha hipótese é que a razão que explica do quanto lhes custa concretizar acordos é que se sentem mais cómodos administrando a impotência do que o poder. Se realmente procurassem o poder, ou seja, transformação da sociedade, a renovação das instituições, o alargamento da legitimidade, não teriam tantas dificuldades em porem-se de acordo”.
A ideia de que é mais fácil politicamente gerir a intransigência do que a cedência é perturbadora, na medida em que torna os políticos mais próximos dos princípios por que se batem do que dos riscos da decisão de os aplicar em coisas e momentos concretos. É claro que uma posição desta natureza levada ao extremo aproxima os políticos da inviolabilidade dos princípios mas ao mesmo tempo projeta-os na inação total e consequentemente em direção ao seu desaparecimento junto dos cidadãos que representam. Esta foi sempre uma linha de demarcação entre reformistas e radicais, já que os primeiros são obrigados a cedências e a compromissos, enquanto que os segundos se conservam olimpicamente afastados dessas impurezas.
Penso que este dilema terá estado presente nas angústias que a geringonça terá causado ao PCP e ao Bloco de Esquerda, catapultadas para o momento presente no quadro da discussão do Orçamento para 2021. Aproximar-se da governação e dos seus compromissos tem obviamente custos para quem pretende manter os seus princípios invioláveis. Mas tal como Daniel Innerarity o identifica sabiamente no seu artigo para o El País, a radicalização dos atores em torno da inviolabilidade dos princípios acaba por paralisar o sistema político e essa paralisação só será favorável aos que estão simplesmente interessados no derrube do sistema democrático. No caso português, não é de todo inútil considerar os efeitos reais que terão provocado a geringonça nas hostes militantes dos dois partidos à esquerda do PS. Entre os militantes e simpatizantes do PCP e do Bloco dominarão aqueles que estão mais interessados na rigidez dos princípios do que nas impurezas dos compromissos políticos da governação? Não sou especialista em militância do PCP e do Bloco pelo que não resposta. Limito-me a constatar que o PCP é mais fiável do que o Bloco, mesmo que essa fiabilidade seja construída em torno de uma rigidez irritante e de uma conceção da geoestratégia da economia mundial que precisava de um longo arejo, daqueles que a incidência pandémica nos obriga para manter a qualidade do ar.
E, como tenho vindo sistematicamente a relembrar, o estado dos sistemas políticos e do ar que se respira na vida e na luta políticas depende do comportamento dos eleitores enquanto destinatários dos discursos e propostas políticas. Será que uma visão mais atenta e crítica da nossa parte sobre o modo como as forças políticas aumentam as nossas expectativas de realização de coisas poderia contribuir para uma vida política com mais negociação e com mais acordos de governação? Innerarity pensa que sim e talvez tenha razão.
Claro que as utopias não devem desaparecer. Mas as próprias utopias não são múmias paralíticas que não se adaptem aos tempos do fazer em política.
Tudo isto tem aplicação frontal na discussão do Orçamento de Estado para 2021 e na eventualidade dele ser aprovado com acordo não global mas em termos de dois acordos bilaterais. As condições materiais concretas que justificaram a geringonça como suporte da governação emergem agora, em meu entender, com mais razão de ser e necessidade. Ou seja, são matéria para que princípios e compromissos possam aproximar-se. Veremos se tenho razão.
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