segunda-feira, 19 de outubro de 2020

PÁTRIA

 

(Finalmente tempo para ver os primeiros episódios de Pátria, a série da HBO Portugal baseada na obra homónima de Fernando Aramburu já aqui comentada neste blogue. E pelos primeiros episódios confirmo a ideia que já tinha formado a partir da perspetiva do escritor radicado na Alemanha há já algum tempo, a de equilíbrio entre as diferentes perspetivas do conflito.)

A minha leitura em espanhol da obra de Fernando Aramburu foi das experiências mais impactantes que tive em matéria de literatura. A experiência basca sempre me tinha impressionado, desde muito cedo quando despontei para as matérias da cooperação inter-regional nos meus tempos de consultor na CCDR-N, onde isso vai. Estive em várias missões de trabalho junto do Governo Regional basco sempre liderado pelo PNV, era então Presidente (Lendakari) José António Ardanza, com a recordação de receções oficiais em que o carro da CCDR-N era escoltado pelos motociclistas polícias bascos nos últimos quilómetros da viagem. As muitas cavaqueiras com o responsável para as relações externas do Governo Basco José Maria Muñoa Ganuza foram-me introduzindo na complexa questão basca, em que o exercício político do PNV sempre me impressionou com a ETA sempre presente e com a monstruosidade de algumas das suas ações.

A obra de Aramburu é também no meu entendimento um exercício notável de perspetiva, contando uma história trágica, com a preocupação fundamental de dar voz aos diferentes dramas não só ao nível dos extremos, quem mata e quem é assassinado, mas integrando toda uma envolvência de posicionamentos que vão desde a cumplicidade plena com a luta armada à mais total indiferença e alheamento. O Pátria de Aramburu é sobretudo uma obra de grande coragem, talvez só possível em alguém que viveu no País Basco mas que está radicado há algum tempo, com a distância e serenidade que isso implica.

A curiosidade era grande quanto à tradução televisiva desta grande obra. Pelos primeiros episódios que vimos de afogadilho, o Pátria da HBO está à altura da coragem de Aramburu, talvez destacando mais a força telúrica das duas mulheres centrais, Bittori (mulher do empresário local assassinado) e Miren (mãe do etarra Joxe Mari autor do atentado). Elena Irureta é uma Bittori excecional, sobretudo pela maneira como alterna a dureza, a serenidade, a dignidade e a ternura e só ela valeria a pena de seguir os sucessivos episódios. A construção de toda a ação em tempos diferentes, situando cada personagem no antes e depois do atentado até à declaração de suspensão da luta armada pela ETA, é um exercício de grande perícia narrativa.

Compreende-se que, tal como a obra de Aramburu, a série tenha despertado a reação dos que nela viram demasiada condescendência para com a violência da ETA ou para com a repressão da identidade basca. O confronto dos extremos permanecerá talvez para sempre na sociedade basca e na espanhola em geral, mesmo que a memória dos factos se vá progressivamente diluindo. Mas o propósito de Aramburu nunca foi julgar as incidências do conflito basco (embora nunca tenha sido próximo da ETA ou sequer do nacionalismo político basco). Sempre interpretei o Pátria como uma tentativa de ir fundo no que viveram as pessoas e as famílias concretas envolvidas nas manifestações violentas do terrorismo basco. E esse objetivo parece-me que é respeitado na série da HBO.

Venham mais episódios.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário