sábado, 31 de outubro de 2020

OPERAÇÃO COZINHA

 

(Desde o colapso do sistema bancário e financeiro registado em resultado da crise de 2008, a política espanhola nunca mais foi a mesma. Tudo se passa como se cavarmos um pouco mais fundo na complexidade dos factos encontramos sempre algo de mais grave. As péssimas condições de governabilidade que a extremamente vulnerável coligação PSOE-PODEMOS tem vindo a proporcionar completam-se agora com o que vai sendo desvendado relativamente ao nebuloso período de fim de ciclo para o PP, que precedeu a ascensão ao poder de Pedro Sánchez. E o que se vai percebendo não é nada bonito …)

No rescaldo da crise financeira de 2007-2008, o famoso caso Gürtel, cuja investigação terá começado segundo os meus registos em 2007, abalou a política espanhola, tão densa que era a trama de corrupção. Não é esse caso que me conduz ao post de hoje, embora a raiz de acontecimentos posteriores de grande repercussão esteja associada a esse caso.

No meio das vastas e picantes revelações que esse caso Gürtel nos trouxe, houve na altura uma acusação que, embora tivesse produzido impacto, talvez não se antecipasse então o que ela iria gerar como consequências mais profundas. No meio da corrupção que o Gürtel revelou, ficou a saber-se que o antigo tesoureiro do PP Luís Bárcenas, condenado por esse caso a 33 anos de prisão em 2018, se tinha abotoado ao que não lhe era devido, com cenas de contas clandestinas na Suiça e todo o rol de evidências que este tipo de casos costuma trazer consigo. Muito antes de ser condenado, não só em Portugal que estes casos levam a tempo a deslindar, mais propriamente em 2013, Luís Bárcenas, talvez incomodado pela falta de apoio do partido a que prestou serviços, decidiu pôr a boca no trombone, procurando salvaguardar a posição da sua mulher e família. E o que fez o antigo Tesoureiro? Resolveu colocar a nu problemas no financiamento do PP durante quase cerca de uma década e todos nos recordamos dos célebres registos contabilísticos manuais que apareceram pelas páginas do El País, jornal que assumiu a denúncia pública de todos os esquemas menos claros que rodeavam o financiamento do PP. Todos nos recordamos também da misteriosa referência nesses registos a um tal senhor X, que a investigação sugeria poder ser o próprio Rajoy.

A partir do momento em que em fevereiro de 2013 o El País revelou os registos de Bárcenas e que no dia 15 de julho do mesmo ano o ex-tesoureiro se apresentou junto do Juiz de Instrução encarregado do processo, o PP passou a viver dentro de uma autêntica bomba de relógio, que poderia rebentar a qualquer momento. O que se sabe agora, a partir de uma operação designada de “Operação Kitchen” e à qual o El País tem dado a devida cobertura (link aqui), é que para neutralizar essa bomba o governo de Rajoy (discute-se nos tribunais se com o conhecimento e consentimento do ex-primeiro Ministro) concebeu e implementou uma complexa operação, sem conhecimento e informação prestados ao Juiz do processo, por conseguinte uma operação sem mandato expresso e sem cobertura legal.

O objetivo da operação era conseguir expurgar dos computadores de Bárcenas a informação gravosa e mais comprometedora para o PP, organizada com fundos que não é possível ainda identificar. Tudo leva a crer que o objetivo da Operação Kitchen foi atingido, embora seja também claro aos olhos da justiça espanhola que ela foi concretizada totalmente à margem do processo judicial então em curso e do Juiz responsável. Hoje em tribunal, políticos, por um lado e polícias por outro esgrimem argumentos quanto ao desconhecimento da operação (os primeiros) e demonstração do seu convencimento quanto à legalidade da operação (os segundos). Existem, obviamente, outros pormenores no meio desta trama, incluindo o facto do responsável físico pela entrada no apartamento de Bárcenas e condicionamento da sua família para análise dos computadores caseiros e extração de informação relevante não estar hoje em condições mentais de prestação de depoimento.

Como bem se compreende, toda esta trama gera “uma dependência de percurso” com séria influência no relacionamento entre as principais forças políticas espanholas. O ambiente não permite como nos computadores aquele “reset” milagroso e salvador que volta a colocar as coisas nos eixos. Nesse aspeto, é de bom tom recordar que Pablo Casado herda uma nebulosa situação partidária no PP, da qual parece finalmente recuperar, sem “reset”, mas pelo menos com a eliminação de pontos críticos no sistema. Mas isso não significa que, eventualmente, à mínima cavadela, surja mais um incómodo da história.

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