sexta-feira, 23 de outubro de 2020

EVIDÊNCIAS

 

(Com a devida vénia a Blaine Gladfelter no Facebook e ao Hugo Figueiredo por tê-lo divulgado)

(Tempos difíceis de trabalho, com muitas horas ao computador em produção ou em reuniões on line, por conseguinte sem energia e reflexão merecedora de ocupar este espaço. A imagem que escolho para hoje espelha relativamente bem o excesso de concentração no otimismo ou pessimismo para abordar questões presentes no nosso novo normal e nos desafios que se abrem para o futuro. À questão do copo meio cheio, meio vazio só podemos contrapor a lógica da reflexão baseada na evidência.)

O debate e a reflexão baseados na evidência não constituem uma manifestação coletiva de fácil emergência. A principal razão é que a sociedade portuguesa e a grande maioria das suas organizações não estão rotinadas para a produção e divulgação de evidência diríamos certificada e validada por centros e fontes de confiança. Pelo contrário, estamos numa era de grande nebulosidade, com as redes sociais, através da sua manipulação organizada, focadas na criação de zonas premeditadas de fumo, em que se vê apenas o que as ínvias interpretações pretendem que seja visto. E o que é impressionante é que o fenómeno se tem multiplicado e diversificado a muito diferentes escalas. Do problema estritamente local às eleições da economia mais poderosa do mundo, com o Presidente (hesito em colocar o P grande) a transformar-se numa espécie de Donald o maior manipulador do mundo.

O modo como as políticas públicas e o debate público são construídos alterou-se profundamente nos últimos anos, não existindo ainda produção reflexiva suficiente para avaliar se essa transformação é ou não determinada pela evolução de enquadramento verificada com a manipulação da evidência no universo das redes sociais. A aceleração do tempo em que as políticas públicas têm à sua disposição para produzir resultados mediatizáveis, combinada com a longa agonia das estruturas técnicas da administração pública (envelhecimento, perda de reconhecimento público, desmotivação pela incidência do jogo partidário, crise de lideranças), trouxeram para o debate e para a opinião pública temas e questões não suficientemente preparados. Nos últimos tempos, uma boa evidência da existência precipitada de questões em debate com falta de evidência suficiente é por exemplo a questão do hidrogénio como opção estratégica. A deficiente preparação do levar das coisas a debate gera imediatamente a ocupação do espaço público pelas posições extremadas, guiadas pela força dos interesses com mais força de movimentação e a partir daí tudo fica inquinado. Um debate que começa inquinado nunca regra geral se endireita. Vai chegar torto à decisão política final e também regra geral os resultados não são brilhantes.

 

Não estou de modo nenhum a assumir aquela posição ingénua frequente de querer retirar de cena os INTERESSES. Não é por acaso que este blogue se foca no interesse público e no interesse privado. Não me canso de recordar que um dos patronos influenciadores do blogue, Albert O. Hirschman, foi um dos grandes estudiosos. The Passions and the Interests: Political Arguments for Capitalism before Its Triumph sempre foi uma das minhas obras de referência que li várias vezes. Os interesses são indissociáveis da vida humana e do capitalismo, por isso estão na boca de cena e dela não podem ser retirados. O contraponto é a lógica do interesse público trabalhar transparentemente a evidência, criar uma espécie de POLÍGRAFO extensivo e alargado. O que por exemplo no tema hidrogénio não existiu. O mesmo se pode dizer quanto à questão ferroviária da bitola ibérica ou europeia, em que a novidade de finalmente se anteciparem realizações importantes a vários níveis, fica sempre ensombrada por essa questão insondável se há razões públicas suficientemente plausíveis para transferir para as calendas a uniformização com a bitola europeia. Haverá razões suficientemente fortes para justificar soluções em bitola ibérica com possibilidade (dizem) de substituição futura pela outra bitola? O problema é que o debate público não tem à sua disposição evidência de informação para exercitar a sua própria inteligência.

Cá por mim, em bitola ibérica ou europeia, em linha única ou dupla, parece existir finalmente a possibilidade de ver passar da minha varanda em Seixas um comboio a uma velocidade mais rápida a caminho de Vigo. Será desta ou o traçado previsto retirar-me-á esse prazer?

Na atualidade corrente, esta questão do “copo meio cheio-copo meio vazio” espraia-se por um conjunto amplo de situações na corda bamba em que estamos mergulhados.

Em matéria pandémica, temos duas evidências irrecusáveis: obstinados em não introduzir confinamentos e medidas mais restritivas, vamos ser obrigados pela dinâmica irreversível da pandemia a introduzi-los, seja em versões mais seletivas ou mais alargadas (até os Suecos dizem que a festa acabou). Por outro lado, a situação portuguesa está cada vez mais alinhada com a dinâmica global pandémica que se verifica por toda a Europa, mostrando como seria necessária uma abordagem europeia global, tendo provavelmente a União perdido aqui a sua última oportunidade para um salto disruptivo no seu projeto. Será que as evidências nos conduzirão a rever comportamentos e a que a União Europeia tenha ainda um tempo de intervenção?

Em matéria de eleições americanas, temos a sensação de que a cabeça está no cepo e que a guilhotina tanto pode enferrujar como precipitar-se. O sistema eleitoral americano é muito complexo, as incertezas são muitas, a dimensão do voto antecipado e por correio pode chegar a uma magnitude elevadíssima e o modo como a extrema-direita mais radical se mostra e se passeia colocam-nos no coração de uma incerteza profunda.

O PP em Espanha parece ter acordado, esperemos que definitivamente, e Pablo Casado portou-se bem isolando e combatendo como sempre deveria ter combatido a ascensão de Abascal e do Vox. Será que este acordar terá efeitos no debate político em Espanha, criando condições para uma alternância democrática consistente, condição para que o atamancado casamento PSOE-PODEMOS possa finalmente reformular-se em função de uma possível derrota eleitoral nas urnas?

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