sábado, 3 de outubro de 2020

NÃO SE CUIDEM, NÃO!

 

(Cerimónia de apresentação na Casa Branca da Juiz Amy Barrett)

(O trabalho que o Washington Post tem realizado no sentido de compreender a trajetória que conduziu à infeção de Trump, da primeira dama e de uma grande parte do staff da Casa Branca é um prodígio de serviço público quanto à demonstração efetiva do que são más práticas em termos de abordagem ao COVID-19. Mais do que o efeito indeterminado que este novo cenário pode provocar sobre a decisão eleitoral americana o que me interessa é se esta evidência terá alguma influência sobre a abordagem pandémica.)

A imagem que escolhi para abrir este post é preciosa. Estamos a falar de uma cerimónia realizada na Casa Branca, com cerca de 150 convidados, na qual Trump fazia gala de apresentar a sua escolha para o Supremo Tribunal de Justiça americano, a ultraconservadora Amy Barrett. Já agora convém recordar que a escolha de Barrett pode fazer pender aquele importante órgão judicial para o lado moralista e conservador durante uma eternidade, já que as nomeações são vitalícias e essa é seguramente a intenção da pressa de Trump em resolver o vazio  causado pela morte da juiz progressista.

A dita cerimónia data do sábado anterior à sucessão de revelações que colocaram o COVID-19 no coração da Casa Branca, incluindo o Presidente e a sua mulher. Se não fôssemos gente avisada seríamos levados a crer que a imagem respeita a um mundo antes do COVID-19, tal é o ar bucólico e prazenteiro com que o jardim da Casa Branca acolhe aquelas pessoas, sem qualquer distância física entre elas, máscaras nem vê-las a não ser em algum Republicano proscrito. A imagem representa bem a total irresponsabilidade que Trump dinamizou entre milhões de americanos incrédulos, que viram estupidamente no não uso das máscaras e no não respeito da distância física um símbolo de afirmação política dos Republicanos nos Estados Unidos. Se fosse necessário encontrar uma melhor evidência da polarização política a que o mundo atual nos pode conduzir esta imagem vale por um tratado. Estamos afinal perante uma polarização que não hesita em colocar o respeito perante o risco da divisão entre morte e vida, entre doença e saúde como veículo de oposição política. Esta gente ensandeceu e com ela o mundo.

Não faço a mínima ideia se Trump sairá fisicamente enfraquecido ou fortalecido com esta infeção, se poderá fraquejar aos seus próprios fatores de risco, ou se sairá recuperado e fanfarrão como sempre afirmando a sua força. Do ponto de vista político, ficar infetado é o que Trump não desejaria, pois as 200.000 mortes contarão sempre como indicador brutal de uma abordagem irresponsável à pandemia, que a infeção não deixará ocultar. Mesmo percebendo que o valor da vida está a descer vertiginosamente na cultura ocidental (coisa que costumávamos imputar a algumas sociedades não ocidentais), o fardo das mais do que 200.000 mortes pesarão sempre por mais alucinados que os apoiantes de Trump sejam.

O que se passou na envolvência direta da Casa Branca pode ser efetivamente apresentado como uma má ou péssima prática de abordar a questão pandémica e talvez ainda possa ser utilizado como reforço da posição das autoridades científica e sanitárias nos EUA e no mundo em geral.

Sabemos hoje que não haverá recuperação económica capaz sem controlo efetivo do vírus. Ora, a partir do momento em que se regressou à ideia de que esse controlo teria de ser concretizado em ambiente de abertura e desconfinamento, as regras da convivência coletiva são cruciais para o êxito da tarefa. Qualquer má prática do exercício dessa convivência e de não ser obrigado ao confinamento é trágica se corresponder a uma evidência não sancionada. Ora perdoem-me o desplante mas a melhor sanção é a evidência de que a irresponsabilidade tem um preço elevado. Os jornais americanos que fazem a informação certa têm mostrado que entre a cerimónia de sábado cuja imagem abre esse post e os acontecimentos descontrolados a partir da noite da quinta-feira seguinte proporcionam um confronto devastador. À harmonia da sessão de apresentação de Barrett sucedeu o caos e o pânico no staff mais próximo de Trump, já para não falar na mais completa quebra de todos os protocolos observada a partir das primeiras infeções reveladas. É trágico mas é verdade: a irresponsabilidade só é verdadeiramente sancionada pela ocorrência do risco que se pretende ignorar ou desvalorizar. Boris Johnson aprendeu com isso. Não sei se Trump o fará.

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