quinta-feira, 8 de outubro de 2020

O QUE PERDEMOS COM O TRABALHO À DISTÂNCIA?

                                                                                    

(Seguramente que o teletrabalho ou trabalho à distância terá vantagens e muitas delas têm sido invocadas nesta perturbação pandémica. Mas como tributo ao rigor científico não posso deixar de me questionar sobre as suas desvantagens ou limitações e não estou a falar no plano estritamente individual, mas antes na perspetiva de aspetos mais coletivos)

Este é dos tais posts que exigem a declaração de eventuais conflitos de interesses. Tenho de vos confessar que, na qualidade de privilegiado com excelentes condições de trabalho na habitação principal, com uma sala-escritório desenhada para um bicho do buraco com paixão pelas estantes e pelos livros que as preenchem totalmente, e no refúgio de Seixas com uma vista privilegiada para o Coura e para o Minho, sou dos que estou a gostar do trabalho à distância. Que me perdoem os colegas que comigo privavam, mas tenho-me sentido como peixe na água nestas condições. Tenho poupado imenso no gasóleo, trabalho que me farto não penalizando, antes pelo contrário, a organização em que estou integrado, sinto uma imensa liberdade de organização do meu tempo e adoro as minhas atmosferas. Rapidamente adquiri as minhas novas rotinas, a produção intelectual não se ressentiu e até descobri como o meu filho mais velho que isso de ir a conferências por todo o mundo estava radicalmente facilitado, com a invenção dos webinares. Infelizmente, as limitações da pandemia não têm permitido que aquela algazarra inconfundível dos meus netos perturbe esta quietude, mas espero que eles me compensem num futuro mais ou menos próximo, arrancando-me da secretária e do computador com a sua criatividade contagiosa. Juro que não resistirei.

Mas em nome do rigor científico e da investigação que prezo, tenho-me interrogado sobre o que pode significar um universo diferente do trabalho com maior peso do trabalho à distância, não do ponto de vista das questões da descarbonização das sociedades, à luz do qual as vantagens são claríssimas, mas do ponto de vista das organizações e da produtividade das mesmas e também dos trabalhadores , intelectuais ou não.

Nos anos 80, mais propriamente em 1988, os que trabalhavam como eu na área do crescimento económico e o ensinávamos a nível superior, fomos abanados com a perspetiva de alguns economistas (particularmente Robert Lucas Jr., com o qual não simpatizava lá muito devido à sua marca nas expectativas racionais) que começaram a ver o capital humano numa outra perspetiva. Segundo esse olhar, a produtividade no trabalho de cada um dependia da massa crítica de trabalhadores qualificados com os quais se repartia conhecimento, espaço de trabalho ou mesmo aglomerações urbanas. A perspetiva das grandes concentrações de capital humano qualificado tinha colocado a teoria económica corrente perante uma interrogação e uma angústia explicativa sem saída. Admitindo como essa economia corrente admitia que a remuneração do trabalho dependia em proporção inversa da sua escassez, a pergunta incómoda era esta: o que é que explicava que trabalhadores qualificados de países menos dotados em qualificações, hipoteticamente com remuneração valorizada por essa escassez, optassem por imigrar para outros países em busca de altas concentrações de trabalho humano qualificado? A ideia revolucionária que então brotava era a de que a produtividade de cada um dependia em grande medida da qualificação de com quem poderia trabalhar e partilhar conhecimento.

Este novo olhar tem implicações analíticas que estão para além da natureza coloquial e reflexiva deste blogue. Mas lembro-me de conversar com os meus alunos quando ensinava estas matérias e quando os provocava pedagogicamente, confrontando-os com esta abordagem. Imaginem que este vosso amigo e Professor está perfeitamente sintonizado com o que se ensina nas melhores universidades do mundo em matéria de crescimento económico. Mesmo nessas condições ótimas ou ideais convidar-vos-ia a estudarem se o puderem fazer nos ambientes dessas universidades. E esse meu convite mantem-se sabendo que uma grande parte dos cursos aí ministrados estão on line. O tema mexia sempre com a turma e acabávamos regra geral a considera que os ambientes-atmosferas de transmissão do conhecimento e de co-trabalho com os melhores é insubstituível e imperdível, em parte explicando porque muitas dessas universidades se arrogam o direito de escolherem no quadro dos últimos percentis dos estudantes candidatos mais qualificados. Acabávamos também a reconhecer o potencial de desenvolvimento desigual que este princípio implica: os mais qualificados atraem os mais qualificados e os menos qualificados lá terão que contentar-se com os melhores dos menos qualificados. Tudo isto numa boneca russa infernal em que o nível hierárquico de qualificações de ordem n está sempre em posição mais favorável do que o nível de ordem n-1.

Tenho para mim que o conhecimento é como as cerejas. A mim acontece-me sempre quando embrenhado em alguma coisa de mais reflexivo a fada madrinha das minhas reflexões contempla-me sempre com uma benesse. O amigo sempre atento e perspicaz Guilherme Costa trouxe-me ao conhecimento investigação de um tal Frank N.H.Neffke e um paper publicado em fins de 2019 no Science Advances (link aqui) que retoma numa outra perspetiva esta questão. O abstract do artigo é cristalino: “A análise mostra que o valor do que uma pessoa sabe depende da nossa companhia no trabalho. Enquanto que ter co-trabalhadores com qualificações similares tem custos, ter co-trabalhadores com complementaridades entre si traz benefícios. Esta complementaridade entre os co-trabalhadores aumenta ao longo de uma carreira profissional e oferece um quadro unificado para explicar observações aparentemente díspares, respondendo a questões como: Porque é que os retornos da educação divergem de modo tão amplo? Porque é que os trabalhadores auferem saláios mais elevados em estabelecimentos de maior dimensão? Porque é que os salários são tão altos nas grandes cidades?”

A pergunta é então inevitável. Como é que a complementaridade entre trabalhadores se comporta no ambiente digital e no trabalho à distância? Como é que a transmissão de conhecimento inter-pessoal que a complementaridade veicula se concretiza? É essencialmente por via do conhecimento tácito, da socialização imersa no ambiente de trabalho da organização, do face-to face próprio de cada organização e de cada equipa de projeto ou de trabalho? Tem essa transmissão de conhecimento dimensões codificadas transmissíveis por via documental e por conseguinte digitalizável?

Como se intui destas questões de investigação (que o são de facto), a resposta às mesmas não é indiferente para respondermos à minha outra questão: que limitações traz o trabalho á distância em termos de produtividade e de acumulação de conhecimento individual e organizacional?

E há aqui matéria para outras incursões blogáveis.


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