quinta-feira, 29 de outubro de 2020

MUDAR PARA FICAR TUDO NA MESMA?

 

                    (Capa do The Core Team - The Economy, University of Oxford)

(Já há tempos que não reflito neste espaço sobre os rumos da economia e do seu ensino. Essa preocupação aplica-se sobretudo a tempos de perturbação como os de hoje. Um exercício relevante consiste em procurar na memória tempos de reivindicação de mudança nos rumos do pensamento e do ensino da economia e verificar o que aconteceu. Os meus registos conduziram-me a um editorial do Financial Times view datada de 25 de setembro de 2014 que se aplica como uma luva aos tempos indeterminados de hoje. Seis anos passaram e ...)

O título do Financial Times (link aqui) era então o de “A economia precisa de refletir um mundo pós-crise – a ciência sombria (dismal), para continuar a ser relevante precisa de se basear na realidade”.

Vou ter de citar e a citação é longa (desculpem qualquer coisinha pela qualidade da tradução):

Quando a economia global bateu no fundo em 2008, a lista de culpados era longa, integrando reguladores desatentos, banqueiros gananciosos e devedores irresponsáveis no mercado do subprime. Agora, a ciência sombria está ela própria no banco dos réus, mergulhada em buscas profundas das razões pelas quais os economistas falharam na previsão da crise financeira. Um dos produtos deste debate é que os estudantes de economia estão a exigir a reforma de um curriculum que eles pensam refletir a tensão egoísta do capitalismo e que é dominado pela matemática abstrata. Parece que os estudantes conseguirão o que pretendem. Um novo curriculum, concebido pela Universidade de Oxford, está a ser ensaiado. São boas notícias. Os defensores do status quo foram empurrados para trás, abrindo caminho a um campo de influência rico de pensadores económicos heterodoxos. Se investigarem fundo encontrarão muitos tratados académicos sobre falências de bancos, ciclos de crédito instáveis e mercados irracionais. Que as pessoas são egoístas e que os negócios perseguem o lucro não é um problema da economia mas da natureza humana. Prever rigorosamente o futuro é um teste irrealista para qualquer disciplina académica, particularmente de uma que abrange interações humanas ilimitadas. Mas o ponto fundamental colocado pelos críticos é correto. Para um assunto tão envolvido com o estudo do comportamento mundano, há demasiada abstração atemporal e demasiado pouco escrutínio dos eventos do mundo real. O curso típico de economia começa com o estudo de como agentes racionais interagem nos mercados sem fricções, gerando um resultado que é o melhor para todos. Só mais tarde cobre essas imperfeições e perversidades que caracterizam o comportamento económico real, tais como as práticas anti-concorrência ou os mercados financeiros instáveis. À medida que os estudantes avançam, regista-se um enviesamento crescente a favor da elegância matemática. Quando o mais impuro mundo real se intromete, limita-se a colocar a questão: isso está muito bem na prática mas como é que se passa na teoria? Este enviesamento teórico levou a que a disciplina resistisse aos desafios num tempo crucial. Quando em 2005 Raghuram Rajan, agora Governador do Banco Central da Índia, nos advertiu que a inovação financeira se tinha transformado numa fonte de instabilidade, esse artigo foi despachado como sendo “ligeiramente Ludita”. O seu apelo a uma supervisão bancária mais prudencial foi ignorado. Felizmente, os passos necessários para trazer o ensino da economia ao mundo real não exigem a invenção de nada de novo ou exótico. O plano de estudos deve integrar a história económica e prestar mais atenção a pensadores não ortodoxos como Joseph Schumpeter, Friedrich Hayek e – sim – mesmo Karl Marx. As Faculdades precisam de recuperar laços com outros domínios como a psicologia e a antropologia, cujas perspetivas podem explicar fenómenos que a economia não pode. Os professores de economia devem fazer do estudo da concorrência imperfeita – e de como as pessoas atuam em condições de incerteza – o ponto de partida dos cursos, e não remeter isso para depois. Os modelos matemáticos podem manter o seu lugar, enquanto os seus resultados não forem considerados de modo demasiado literal. Mas muitos dos modelos usados nos bancos centrais ignoraram até agora o setor financeiro como fonte de instabilidade. Remediar este facto trará ainda mais complexidade. As matemáticas serão mais difíceis. No após crise financeira a popularidade dos cursos de economia aumentou. Tendo visto a economia global cair do precipício, os novos estudantes não toleram aulas anódinas sobre a sabedoria dos mercados. Exigem mais pluralismo e humildade num assunto que até agora sobreavaliou o purismo e a certeza. A economia não deve ser ensinada como se a sua prioridade fosse a descoberta de leis atemporais. Os que se destacam na disciplina devem recordar que no seu coração a disciplina tem o comportamento humano, com todas as complicações e desordens que isso implica.”

Vinda do Financial Times esta mensagem adquire outro significado. É uma daquelas críticas que gosto imenso de trabalhar, as críticas vindas de dentro. Mas ela tem seis anos. Depois de uma perturbação, a crise de 2008, veio uma outra de muito maiores proporções, gerada agora pela interação ruinosa entre uma crise sanitária e uma crise económica, devastadora no plano social. Seis anos não parecem ter sido suficientes para transformar as coisas, embora verdadeiros dogmas que se aguentaram durante anos e anos tenham a vindo a cair com estrondo. Recordo apenas três para nos focarmos. O dogma de que a política monetária tudo resolvia caiu com estrondo, compreendendo hoje que tinham enterrado precocemente as ideias de Keynes e a política fiscal. A pandemia cavou ainda mais essa convicção. Segundo dogma, o espectro inflacionista tão presente (ou inculcado por interessados?) na sensibilidade alemã não resiste a carradas de liquidez vertidas na economia e mesmo as expectativas quanto à inflação de longo prazo continuam mortiças. Terceiro dogma, a ideia de que o aumento do salário mínimo gera deterministicamente desemprego começa a ser abalado. David Card e Alan Krueger (funestamente desaparecido de entre nós) trouxeram-nos evidências de que assunto tão sensível na economia americana reunia evidências contrárias.

É verdade que temos um novo programa de economia a emergir com o The Core Team, apadrinhado por Oxford (link aqui). Mas, como costumo relembrar, nos cursos de MBA os alunos que tiveram introduções à economia e se exercitam nesses cursos continuam a sentir a esquizofrenia dos dois mundos. Introduziram-se na economia através de um mundo sem imperfeições e onde a figura do empresário está ausente, substituído pela matemática da otimização. Chegam ao universo de casos e de imperfeições estudados nos MBA e sentem que o que lhes foi ensinado foi uma perda de tempo.

Continuarão por muito tempo indiferentes?

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