quinta-feira, 1 de outubro de 2020

HOSTILIDADES

 

                                                        (Pinto&Chinto, Voz de Galicia)

(Reflexões induzidas pelo editorial de hoje da VOZ DE GALICIA, pela imbecilidade grotesca do debate Biden-Trump e pela doce amenidade das nossas hostilidades internas. Onde acabo a interrogar-me sobre as implicações de viver em “brandos costumes”, positivas obviamente face ao que nos rodeia, mas não necessariamente sem custos.)

 O Diretor da Voz de Galicia Santiago Rey Fernández-Latorre não é dos que assina muitos editoriais, mas isso é uma indicação preciosa de alerta sobre a importância dos seus aparecimentos. Quando escreve podemos intuir imediatamente que o pretexto é grave ou de grande relevância para a situação política, económica ou social em Espanha, umas vezes em articulação com a presença na União Europeia, outras no âmbito da mais estrita política interna.

O editorial do 1º de outubro (link aqui) corresponde a este modelo. Não tenho dificuldade em imaginar que a situação em Espanha começa a tornar-se irrespirável, tal é o desatino político e sanitário, com as infinitas combinações de dosagem entre estas duas formas de desatino de proporções e efeitos incalculáveis que só por milagre não irão conduzir o VOX a uma percentagem eleitoral vergonhosa para a democracia espanhola e europeia. O desabafo de Fernández-Latorre está em meu entender em perfeita convergência com o que pensarão hoje muitos espanhóis, fartos da sensação de incapacidade de atuação coordenada e eficaz que estão a sentir, com governo, justiça e parlamento atingidos pelo mesmo ensandecimento. A tensão idiota e desatinada entre o governo central e o da Comunidade de Madrid (tudo se passa afinal no vórtice do centralismo espanhol) corre o sério risco de se generalizar a toda a Espanha, inquinando de vez as relações entre o governo de Sánchez e as restantes comunidades autónomas, algumas das quais têm mantido felizmente a serenidade política.

O ambiente de hostilidade que se respira na vida política espanhola é, assim, um sinal impiedoso dos tempos que vivemos, cavando uma espécie de percurso suicidário que é um ambiente fértil para que os mais interessados na degradação da vida democrática espanhola assistam embevecidos e de palanque à colocação dos mais variados tipos de passadeiras para a sua entrada em cena.

Hostilidade idiota e desenfreada foi também o que marcou o debate Trump-Biden, do qual fiz uma valoração ex-ante bem-sucedida: tive a intuição de que não valeria sacrificar o meu santo e retemperador sono.  O debate deu-me razão, tendo visualizado apenas alguns excertos por razões de proteção da minha sanidade mental. Hoje, não por acaso, captei no meu Twitter inúmeros tweets de americanos mais ou menos representativos, clamando “desculpa-nos Hillary por não termos votado em ti” e “que bom teria sido a América governada com a tua presidência”, fazendo afinal mea culpa pela incapacidade de uma certa esquerda de compreender o que é um mal menor em política. O estilo de Trump é inqualificável e admito que só nervos de aço (que Biden não tem) podem aguentar replicar tal comportamento. Creio que Trump se derrota fazendo-o cair ou derrotar-se a ele próprio, pressupondo que as setenta e mais interrupções agarotadas do personagem no debate irão convencer a maioria dos americanos de que o tipo é perigoso como o diz a sua sobrinha, que o deve conhecer melhor. Um Presidente de reality show idiota e aporcalhado é o que não esperaríamos ver a governar a maior potência do mundo, dando guarida e ganhos a uma canga imensa do “greed” (ganância) nos negócios.

Com este ambiente de hostilidade na mesa dei comigo a pensar que, comparadas com este panorama, as hostilidades que se vivem cá pelo burgo são birras de crianças, praticamente inofensivas. Tudo bons rapazes e brandos costumes, o que convidaria a uma psicanálise coletiva, analisando as suas origens que muito provavelmente estarão na inculcação em todos nós de aspetos tenebrosos do antigo regime. Bem pode Frei Marcelo pregar os perigos da instabilidade política que os seus contornos serão sempre travados num ambiente de hostilidade mais branda e se for necessário haverá sempre umas lágrimas para convidar à não hostilidade e ao sentimento (caso por exemplo do anúncio da apresentação da candidatura de Luís Filipe Vieira à direção do glorioso SLB, pelos vistos a última, o que é um barómetro das conclusões da justiça sobre os casos em que está envolvido).

Vamos vivendo na doce brandura dos nossos costumes, mas conviria de vez em quando parar para pensar nas implicações da perpetuação desse modelo. Somos cada vez mais pouco disruptivos nas decisões e repete-se a ideia de que as transformações serão, desta última vez, sempre fundamentais e necessárias, resvalando rapidamente para soluções de mudanças incrementais, para doer menos e não perturbar o aconchego da suave amenidade. É verdade que temos evoluído incrementalmente (muito em algumas dimensões, veja-se por exemplo a espantosa evolução das nossas especializações mais tradicionais) mas interrogo-me se o mundo está apenas para evolução incremental, que parece estar no nosso ADN civilizacional. Tenho muitas dúvidas que isso seja possível. Uma das consequências mais prováveis é a séria possibilidade dos agentes com maior capacidade de inovação disruptiva não encontrarem acolhimento e terem que emigrar para realizar as suas aspirações. Vale a pena pensar nisto e avaliar se geracionalmente poderemos melhorar neste aspeto.

Nota final

Na Circulatura do Quadrado de ontem, onde já praticamente esquecemos a presença anterior de Jorge Coelho, o que abona a favor de Ana Catarina Mendes, que bem pode ser a futura liderança do PS, ficámos a saber que Quim Torra é um grande amigo de Pacheco Pereira. Partilho com Pacheco Pereira algum do seu criticismo relativamente ao mundo (carradas de razão quando afirma que o que se passa hoje nos EUA é o mais importante de tudo e que tudo o resto é pouco importante), mas amigos como Quim Torra dispenso bem, para bem da minha sanidade política. No seio de preocupações pertinentes sobre a legalidade democrática na Catalunha, a liderança política da Generalitat degradou-se para níveis que vão ser nefastos para o próprio independentismo e Quim Torra personifica admiravelmente essa degradação.

Amizades, amizades, realismo político à parte. Quem quiser usar na lapela o símbolo do independentismo está no seu direito democrático, mas que isso não equivalha a pactuar com múltiplas formas de degradação política das instituições.

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