quinta-feira, 15 de outubro de 2020

PACHORRA PARA NEGOCIAR

                                                                                    

(A política atual está cheia destas coisas. A gravidade do contexto em que vivemos recomendaria que se atendesse ao sentimento que emana das populações eleitoras e que se traduz no princípio de que mais vale um entendimento operativo sobre algumas questões fundamentais do que o prolongamento estéril de querelas que levam à inação. O que temos na prática contraria esse princípio de bom senso de que os eleitorados se alimentam e há que valorizar a categoria básica da paciência aplicada à negociação política, pois dela precisarão as forças políticas que tenham a responsabilidade da governação em minoria parlamentar.)

O sul da Europa, com particular atualidade em Portugal e em Espanha, particularmente nesta última mas também cá pelo burgo, vive um momento de trágica desproporção entre a gravidade dos desafios de momento e a frágil consistência dos acordos de governação. Como me tenho dedicado nos últimos tempos a zurzir na situação política espanhola, que me preocupa cada vez mais porque me incomoda ter ao lado uma situação potencialmente explosiva, é tempo de centrar a atenção sobre o estado da arte do suporte político à governação em Portugal.

Todos sabemos que a sociedade política portuguesa esgota praticamente as suas energias de negociação no período que antecede a apresentação, discussão e aprovação do Orçamento Geral do Estado. Sinceramente, nunca percebi bem esta obsessão pelo universo do Orçamento, sobretudo em termos de confronto de energias e recursos de negociação dedicado a outros processos. Basta, por exemplo, comparar o paupérrimo debate entre as forças políticas sobre o Plano de Resiliência e Recuperação Económica com a fogosidade do debate orçamental para compreender que há aqui uma perigosa deriva obsessiva pelo curto prazo (um ano) em detrimento da projeção do nosso futuro. O mesmo se diga quanto ao olímpico desinteresse que as forças políticas em Portugal dedicam à preparação do quadro estratégico dos períodos de programação para a aplicação dos Fundos Estruturais Europeus de Investimento (FEEI), o que é contraditório com a diversidade de atoardas lançadas no ar sobre as condições da sua aplicação.

Considero que o esgotamento da capacidade de debate no orçamento é um sinal de atraso e de não modernidade, mas é assim que estamos em matéria de estado da arte de debate político mais alargado.

A discussão em torno do Orçamento de 2021 acontece para mal dos nossos pecados num período de forte agravamento pandémico e por isso tudo levaria a crer que essa nota fosse suficientemente importante para gerar um consenso possível. Como tenho vindo a insistir em posts anteriores, vejo por maioria de razão que a situação atual convidaria a um prolongamento dos acordos à esquerda. Bem sei que as questões sociais não são monopólio da esquerda, como ontem o regressado António Lobo Xavier acentuava no Circulatura. Mas esse é um problema da direita, é ela que terá de perguntar-se porque perdeu essa tradição social-cristã e se deixou estiolar na dimensão estritamente económica do liberalismo.

Dizia ontem o José Pacheco Pereira no mesmo programa que, em matéria de negociação política, o único partido fiável é o PCP, quando diz sim é sim e quando diz não é mesmo não. É curioso que a Ana Catarina Mendes inclinou a sua cabeça em tom afirmativo, mas teve que se refugiar num sorriso bem amarelo quando o mesmo Pacheco Pereira lhe retorquiu que o PS era também pouco certo nas negociações. Neste caso da negociação do Orçamento de 2021, a principal instabilidade decorre do tom caprichoso com que o Bloco de Esquerda tem mergulhado na negociação. Diria que nesta matéria o Bloco tem sido cada vez mais PODEMOS. Não lhe gabo os gostos, é uma deriva perigosa sobretudo para um partido que já entrou no perímetro da governação e das negociações que a rodeiam. E curvo-me reconhecido perante a pachorra com que desta vez o PS tem aguentado o referido estilo caprichoso de negociar do Bloco que está refém da sua propensão mediática, largamente levado ao colo por um determinado jornalismo em Portugal.

O Novo Banco é uma matéria terrível para inquinar as negociações de um Orçamento. Não vale a pena chorar sobre o leite derramado de uma solução de resolução que foi demasiado experimental para as nossas capacidades e também de um contrato de venda a uma Lone Star largamente influenciada pela intransigência da regulamentação comunitária que, face a uma não venda, levaria à liquidação do banco. O absurdo da questão em que estamos metidos equivale a uma escolha dramática entre dois abismos: a continuidade dos apoios com origem no Fundo de Resolução, com o inconveniente de que para além de determinados limites o próprio sistema bancário pode ser abalado e a hipótese de liquidação do banco ou da sua compra/absorção por outra entidade do sistema bancário nacional. O absurdo consiste no reconhecimento de que ambas as soluções podem gerar os tais efeitos sistémicos que se quis na altura evitar com a solução experimental da resolução, pelo menos para a dimensão de um banco como o BES. Nestas condições, a única que faz sentido é implicar o Governo e o PS num rigoroso acompanhamento da situação do banco e a justificação plena das operações de solicitação de apoio ao Fundo de Resolução, assegurando que não existirá aproveitamento ou benefício do infrator.

Poderão dizer-me que a fiabilidade do PCP em matéria negocial é uma espécie de outra face da ortodoxia e do imobilismo das ideias. Admito que isso é verdadeiro. Mas essa matéria é ao seu eleitorado que cumpre resolver. Em negociação política a fiabilidade e a confiança são um valor em si que tem de ser reconhecido e basta estarmos atentos ao que se vai passando em Espanha para compreender a sua relevância. E se o PS também ele se tornar fiável nessa negociação teremos ganhos evidentes. Essa fiabilidade e confiança são incomparavelmente mais importantes do que o charme mediático do Bloco.


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