(O debate de ideias no país está minado por uma contradição fundamental: há gente de mais a falar que não tem nada de relevante para dizer e muita gente com espessura de pensamento que se remete ou é remetido ao silêncio. Por isso é de saudar quando aos representantes deste último grupo é dada a possibilidade de difundir o seu pensamento.)
Pelo que julgo perceber foi a publicação pela Actual Editora do livro “Os Grandes Pensadores da Economia” de Nuno Ornelas Martins (NOM) que conduziu à entrevista no Negócios (link aqui) deste Professor da Católica Porto Business School, doutorado em Economia pela prestigiada Universidade de Cambridge. O NOM, com forte ligação aos Açores e à Terceira, foi meu aluno muito lá trás no tempo na Católica do Porto, quando no âmbito de uma parceria entre a FEP e o Centro Regional do Porto da Universidade Católica tive o prazer de lecionar a disciplina de Desenvolvimento Económico a um grupo muito promissor de alunos do curso de Economia daquela Escola.
Extremamente reservado, já naquele tempo se percebia o rigor do pensamento e sobretudo a sua forte propensão para o entendimento da Economia na tradição da Economia Política, remando contra as forças do mainstreaming económico orientado para a formalização extrema, para a subvalorização da capacidade de compreender as transformações das economias e a relação entre produção e distribuição do rendimento. Pelo que tenho acompanhado, a evolução da obra e da carreira académica do NOM foi coerente com esses princípios, muito potenciado pela sua passagem por Cambridge onde há gente de excelência na epistemologia e na história do pensamento económico (com a memória de Grandes como Keynes, Sraffa, Joan Robinson e Pasinetti, só para falar nos que me são mais próximos intelectualmente) a pairar seguramente sobre os salões, auditórios e colleges daquela Universidade).
A entrevista ao Negócios é curta mas é rica, sobretudo a dois níveis.
No que respeita às transformações da economia como ciência, NOM é fiel ao princípio da tradição dos Grandes que “pensavam sobre economia” e não cediam às tentações da formalização matemática que passou a ser o principal fator de reconhecimento entre pares, claramente segundo uma lógica de reprodução do poder dominante. Aliás, a contradição que hoje vive a ciência económica e que não deu origem ainda a uma verdadeira revolução é o facto de vivermos momentos de grande indeterminação e incerteza e alguma dessa economia pensar na base de outros pressupostos que não têm radicalmente nada que ver com os problemas que hoje nos atormentam. Por isso, a desvalorização social e política da economia como ciência e apesar de todo esse formalismo, convido-vos a visualizar algumas das intervenções do físico e fantástico pedagogo de ciência Richard Feynman: "A Ciência Social é um exemplo de uma ciência que não é uma ciência … Seguem as normas … mas não conseguem atingir nenhuma lei” (link para dois vídeos aqui e https://vimeo.com/118188988). Ou seja, apesar do formalismo, numa linha de preocupação pela equivalência a outras ciências, as diferenças continuam a existir e no pior dos casos possíveis comprometendo a sua capacidade de contribuir para a compreensão das transformações e incertezas fundamentais.
Se o NOM me permite, a questão é ainda hoje mais complexa, já que não estamos apenas perante a dicotomia primado ou não da formalização matemática. Como o Nobel Paul Romer nos mostrou com rigor e frieza (mas também pela sua notória incompatibilidade com alguns dos expoentes da economia formalizada, embora sendo ele também um desses expoentes), o universo da formalização matemática divide-se em dois sub-mundos, um deles nada recomendável. Romer introduziu com algum estrondo no debate económico o conceito de “mathiness”, que não é mais do que a tentativa de encontrar um termo para designar a má utilização da matemática em análise económica (link aqui para post em novembro de 2018). A “matematicidade” (designação que encontrei mais próxima e apelativa do termo de Paul Romer) corresponde à utilização do rigor formal como ocultação ou desvio intencional de resultados que ou pretendo desvalorizar ou atingir. Ou seja, a matemática como instrumento de operacionalização do princípio fundamental de que a teoria constituirá sempre uma simplificação da realidade terá sempre um lugar, em meu entender, na economia. Mas que não significa que o rigor formal não possa ser alcançado também por exemplo do ponto de vista lógico.
Como os evolucionistas económicos nos mostraram (particularmente Richard Nelson e Sidney Winter nos mostraram) teoria formal e teoria apreciativa podem constituir ambos instrumentos válidos para conseguirmos a simplificação desejada, desde que a primeira não esteja tocada pela deriva da “matematicidade”. A melhor evidência de que o poder do “mainstream” é muito forte é dada pelo modo como o debate em torno da “mathiness” de Romer foi abafado na academia. Se é verdade que nos centros mais influentes dessa academia (EUA, por exemplo) o debate produziu algum estrondo (sobretudo ampliado pela Nobel de Romer posterior a esse debate), nos círculos cada vez mais longínquos desse centro, como por exemplo em Portugal, o debate foi olimpicamente ignorado. Como não podia deixar de ser, quando o poder e a sua capacidade de se reproduzir, eternizando-se, estão em perigo.
Surpreendentemente e por razões que não estão ainda suficientemente explicadas, o CAPITAL no Século XXI de Thomas Piketty constituiu um estrondoso êxito editorial, mostrando que os percursos por uma não formalização matemática ou pelo menor recurso à modelização podem contribuir para um ressurgimento da figura do “economista que pensa sobre economia”.
A segunda parte da entrevista não é menos interessante e mostra que um economista especializado no pensamento económico é capaz de bem compreender o mundo das transformações que o rodeiam. Os dois jornalistas do Negócios têm a arte de puxar para a primeira página da entrevista o tema da política industrial na União Europeia, sobretudo num contexto em que face ao confronto EUA-China a reconsideração do papel da Europa nas cadeias de valor globais é algo que está muito para além do tom amedrontado com que as autoridades comunitárias falam de política industrial. Aliás, com uma enorme contradição, pois ao mesmo tempo que se fala de reindustrialização e resiliência, não se compreende (ou melhor o gato tem o rabo de fora) a relutância em se assumir que a Europa precisa de uma política industrial e não apenas de uma política de investigação e inovação.
Este tema é fundamental para uma economia como a portuguesa e seria bom que a Presidência portuguesa lhe pudesse dar algum impulso e não me parece que os alemães possam ser um obstáculo, antes pelo contrário, a essa pretensão.
A questão do negacionismo em relação à política industrial decorre diretamente do primado que os diretórios europeus inspirados pela liberalização sem limites impuseram ao aprofundamento do mercado único europeu, regras largamente adversárias do papel dos Estados-membros em conduzir políticas industriais. Ora, o modelo Europeu é um modelo até ao momento de desenvolvimento desigual, em que os diferentes países estão em trajetórias diversas de mudança estrutural e de especialização produtiva. Nem sempre os países como Portugal puderam beneficiar no âmbito das complexas negociações comunitárias de benesses temporárias como foi, por exemplo, o caso do PEDIP, em que o esforço de reequipamento da indústria portuguesa foi importantíssimo. Os longos processos de mudança estrutural que uma economia portuguesa precisa para se tornar menos vulnerável exigem que o contributo dos FEEI seja completado por política industrial consequente que tem de ser compreendida como instrumento de coesão e não como violação das regras das ajudas de Estado.
A pandemia veio apanhar a Europa como um todo com as calças na mão, mas colocando em cima da mesa a reconsideração do seu lugar, como NOM bem assinala, nas cadeias de valor globais, elas próprias atingidas pela incerteza e pelas derivas populistas mais assanhadas. Além disso, não podemos ignorar por muito mais tempo que essas mesmas cadeias de valor globais são fortemente influenciadas pelo capitalismo de Estado chinês, gerando uma desigualdade imensa em termos do primado dos limites das ajudas de Estado.
Ou seja, a pretensão de ocultar que a política industrial existe agilizada pelos diretórios mais liberalizantes da União cai por terra em plena pandemia. Claro que esta pode no futuro atenuar-se e a força desses diretórios ressurgir. Mas o momento é propício a que a União se deixe de hipocrisias, até porque é ela própria que está em jogo. É, em meu entender, uma oportunidade para que a política industrial ao serviço da abordagem ao desenvolvimento desigual no contexto da União ganhe alguma força.
É um tema estruturante e de impulso, acho eu na minha modesta opinião, para a Presidência portuguesa. E até dou de barato que o primeiro-Ministro António Costa encarregue o António Costa Silva dessa missão, probono ou devidamente remunerada não importa.
P.S. Obrigado ao Professor e Amigo Leonardo Costa pela recordatória da entrevista.
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