sexta-feira, 2 de outubro de 2020

A MESMA QUESTÃO DE SEMPRE

 



(A famigerada e putativa relação entre a simplificação da contratação pública e a corrupção regressa de novo aos radares da eficiência e da segurança. É uma recorrência nos fantasmas das políticas públicas.  Até podemos generalizar: a questão ressurge quando os meios disponíveis chocam com a histórica incapacidade organizativa para uma coisa aparentemente simples, concretizar projetos.)

Para quem segue a saga temporal dos Fundos Estruturais e de Investimento Europeus (os agora designados de FEEI) mais como avaliador de políticas e programas do que propriamente seu utilizador, Portugal em geral sempre deparou com os chamados “sentimentos misturados” a propósito desta matéria.

Por um lado, existe entre a comunicação social, indevidamente entendida como uma aproximação a uma opinião pública que não temos, pelo menos madura, uma reserva negativa sobre a eventualidade de fundos disponíveis não serem executados. Por isso, não há político algum que assuma que entre executar e parar para pensar para avaliar o alcance estratégico do que vai ser investido decida pela segunda opção. Há evidências (e já tive testemunhos concretos de personagens responsáveis pela gestão de programas envolvendo a utilização de FEEI, cujos nomes obviamente não divulgo por razões de confidencialidade profissional) de que, à mínima e mais mixuruca notícia que saia na imprensa sobre dificuldades ou atrasos de execução, chovem os pedidos de informação de governantes, políticos e deputados sobre as razões que determinam tal sacrilégio do bom Manual de boas práticas de execução para reivindicar em Bruxelas. Quem não se recorda dos anúncios autoelogiosos de que fomos os primeiros a apresentar os programas em Bruxelas (o Plano de Recuperação está na calha) e politicamente em Portugal é sempre muito sensível a publicação de informação vinda da Comissão Europeia quando ela compara o diferente nível de implementação e de reembolso de fundos dos programas ou dos países.

Ou seja, a pressão para a execução não é propriamente social, mas pelo menos o seu eco na imprensa coloca políticos e governantes em brasas.

Por outro lado, existe uma ampla perceção junto de beneficiários e promotores de operações apoiadas por FEEI e reguladas por programas nacionais de que a tramitação dos apoios é lenta e por vezes até exasperante. Embora não possamos generalizar, posso indicar casos em que a decisão sobre as candidaturas a determinados avisos pode prolongar-se para períodos em torno de um ano, o que não caberia na cabeça de nenhuma entidade ou personagem de uma administração europeia minimamente eficiente. O rol de razões que podem explicar essas longas esperas é imenso: falta de recursos, excessiva complexidade da tramitação, de critérios de apreciação, complicações regulamentares, autocensura dos programas nacionais receosos de operações de controlo da Comissão Europeu e dos seus órgãos de controlo que se tornam mais papistas do que os papas do controlo, etc. Para todos os gostos e correntes. E já não estamos a falar dos processos que é preciso submeter para obter os reembolsos dos investimentos realizados na medida dos apoios existentes. É uma matéria recorrente na programação de FEEI em Portugal e a tragédia dos sistemas de informação de suporte agrava o problema. Portugal não tem conseguido estabilizar um modelo de sistemas de informação para os principais Fundos, FEDER e FSE, muda excessivamente de processos, com o aspeto gravoso de que, por vezes, estão os intervenientes na programação a começar a dominar o acesso a um sistema e são surpreendidos pela mudança desse sistema. Vá lá saber-se porque razão existe volúpia informática em Portugal e estamos a falar de investimentos e contratos chorudos.

Mas existe ainda uma outra marca nestas questões. Há desconfiança sobre as condições de aplicação de FEEI. Esses fantasmas regressam habitualmente quando há grandes volumes de financiamento disponíveis. Como é agora o caso das subvenções a fundo perdido do Plano de Recuperação. Como certamente repararam, da direita à esquerda, proliferaram as mais catastróficas perspetivas sobre a aplicação de tais fundos: “sempre para os mesmos”, “os tubarões já se movimentam”, “os lobbys mexem as suas cartas de influência”. Confesso-vos que se algum dia estivesse ligado a gestão de FEEI sentir-me-ia enxovalhado com estas generalizações.

Resumindo, temos aqui uma triangulação transformada em equação difícil de resolver. Por um lado, pressão para a execução, sancionando atrasos de implementação. Por outro, perceção generalizada de burocracia e excessos regulamentares. Mais ainda, cheiro a corrupção em tudo que diz respeito a aplicação de FEEI. Esta triangulação de perceção não abona lá muito acerca da sanidade do país e da sua administração.

Ora, os jornais de hoje trazem para a primeira página a crítica do Tribunal de Contas à vontade manifestada pelo Governo de simplificar processos de contratação pública para criar condições favoráveis à execução dos fundos do Plano de Recuperação. A crítica pode dizer-se que é dura porque associa a simplificação de processos a corrupção e a distorção da concorrência.

E aqui estamos nós de novo na vertigem do não equilíbrio. O problema é que a questão não é indissociável de três outros aspetos, que tornam a equação infernal: (i) o código da contratação pública está longe de constituir um equilíbrio perfeito entre segurança e eficiência na contratação e integra no seu articulado exceções, por exemplo a relativa aos contratos de assessoria jurídica dos escritórios de advogados, que despertam por si só desconfianças; (ii) a justiça com a sua lentidão não ajuda a acelerar processos em que há disputas sobre contratos; (iii) a cultura de “accountability” (responsabilidade) reinante em Portugal favorece pouco a avaliação a posteriori dos processos e tende para a sua regulação à cabeça.

O esforço de execução que vai ser pedido ao país e à sua administração central, regional e local com o Plano de Recuperação e Resiliência é enorme, quando confrontado com períodos de programação anteriores. E não é apenas este Plano que se perfila. Há um período de programação (2014-2020) para acabar e um novo (2021-2027) que começa. Existirá capacidade de projeto para tanto, em termos de conceção, gestão e absorção? Neste contexto, entraves gerados por excessos de regulamentação burocrática podem conduzir a ineficiências de execução de grande porte. Percebe-se a ideia de alguma simplificação de processos. Mas regra geral quem se mete por esses atalhos não o faz frequentemente de boa fé e, como diria o outro, devo reconhecer que a corrupção também se alimenta de “short cuts”. Não seremos nós capazes de um certo equilíbrio nesta triangulação? A simplificação administrativa quererá sempre dizer que vamos por atalhos manhosos?

Pelo menos sabe-se que a aplicação dos fundos para a recuperação e resiliência não estarão sujeitos à regulamentação FEDER e FSE, complexa na sua própria origem. Mas será que as entidades de gestão e supervisão vão ser as mesmas das que respondem pela gestão e supervisão de FEEI? Haverá a tentação do já agora utilizar a mesma base regulamentar? Estaremos nós condenados a explorar os atalhos antecipados pelos agentes rotinados na pequena e média corrupção?

E uma pescadinha de rabo na boca cerca-nos implacavelmente: estes tempos estão para aplicar os fundos para termos uma sociedade e uma administração mais moderna nos seus processos; mas a sua boa aplicação exigiria essa modernidade.

Tanta interrogação para os resultados pretendidos.

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