(Tenho insistido em sublinhar a tendência de deterioração das condições de distribuição do rendimento das economias mais avançadas, minando esperanças em torno do Estado social e suscitando novos desafios à ação política. Podemos entretanto questionar se essa é uma tendência do capitalismo mais recente ou se atinge outros modelos. Branko Milanovic ajuda-nos como sempre com pertinência a responder a essa questão. Falemos então da China trazendo para aqui um artigo recente na incontornável FOREIGN AFFAIRS, link aqui).
De espírito aberto, temos de convir que a China tem sido nos tempos mais recentes (incluindo a pandemia) fonte de novidade, dúvida, perplexidade, crítica aberta e sei lá o que mais, num mundo pouco interessante e que, como alguém dizia no cinema, não é para velhos. São as ameaças à liberdade (como a questão de Hong-Kong bem o ilustrou, é a sua política externa de ocupação do vazio criado pela imbecilidade estratégia e diplomática de Trump, é a suspeição sobre a vigilância tecnológica protagonizada por algumas das suas grandes companhias BIG-TECH, é a sua por vezes contraditória política comercial externa no quadro do multilateralismo da OMC, são as dúvidas sobre o surto pandémico de Whuan não resolvidas pela missão no local da OMS, mas é também a perceção de que a recuperação chinesa é essencial para organizar a economia mundial no pós-pandemia.
Pelo conhecimento que temos sobre a transição económica das economias do leste europeu após o desmoronamento do muro de Berlim, sabemos que a entrada nas promessas da economia de mercado se traduziu, pelo menos nos primeiros anos, por um aumento da desigualdade na distribuição do rendimento. O coeficiente de GINI que mede algo imperfeitamente a desigualdade que se situava em alguns países no escalão dos 0,2-0,3 passou em alguns deles a situar-se no escalão dos 0,3-0,4.
Tem por isso sentido questionar o que é se passou na enigmática China em termos de distribuição do rendimento ao mesmo tempo que o desempenho de crescimento económico global e per capita foi projetando a economia chinesa para níveis mais elevados de desenvolvimento económico. A China tem obviamente especificidades que a colocam ao abrigo de qualquer benchmarking internacional mal conduzido. Há quem diga que a China exemplifica o que o capitalismo de má reputação gostaria de ter à sua disposição. Ou seja, o mercado a funcionar com repressão política a controlá-lo. É conhecido que o regime político tem mão dura para a corrupção económica como para outras matérias. Mas, apesar disso, parece evidente a emergência na sociedade chinesa de um conjunto de privilegiados económicos. Será que os números o evidenciam com clareza?
Como sempre de modo pertinente e rigoroso, Branko Milanovic ajuda-nos nessa tarefa.
O gráfico que abre este post é de sua autoria e nele se compara em duas escalas diferentes (em dois eixos dos YY) a evolução do PIB per capita e do coeficiente de GINI, o tal indicador imperfeito mas que toda a gente utiliza dada a sua simplicidade e o facto de ter hoje uma cobertura de dados que o torna incontornável apesar das suas imperfeições.
Todos sabemos como o disparar do crescimento económico chinês e do seu PIB per capita foi acompanhado por uma avassaladora saída da pobreza absoluta de uma massa relevante de chineses. A questão que se coloca é se essa saída da pobreza absoluta de tanta gente foi ou não acompanhada por aumento da desigualdade.
O gráfico atrás referido é esclarecedor. Até meados da década de 2000, essencialmente em linha com as políticas de revitalização do mercado atribuídas ao líder Deng Xiaoping, a desigualdade disparou até ao escalão dos 0,4-0,5 do coeficiente de Gini, que é pelos padrões de comparação internacional um nível muito elevado de desigualdade. O facto do indicador revelar alguma reversão e depois uma nova estabilização na segunda metade da década de 2010 pode revelar que as autoridades chinesas se aperceberam dos riscos de uma desigualdade descontrolada para o próprio regime.
O que parece estar aqui em causa é uma situação típica de desvio acentuado entre rendimentos urbanos e rendimentos do mundo rural (a relação crescimento económico-urbanização é clássica), apesar do significado da redução da pobreza absoluta.
Curiosidade das curiosidades, diria mesmo paradoxo dos paradoxos, é o facto da experiência chinesa parecer dar póstuma razão ao economista americano, pai do crescimento económico e dos grandes agregados macroeconómicos das Contas Nacionais. A curva de Kuznets, hoje desacreditada pelo aparente determinismo afunilador que veiculava, considerava que a combinação das dimensões do crescimento, da industrialização e da urbanização levava os países a uma fase em que o crescimento económico se traduzia primeiro por um aumento da desigualdade, para depois a reduzir. O estudo aprofundado das relações entre crescimento e desigualdade mostrou que esse trade-off entre crescimento e equidade não existia e que a desigualdade pode ser mesmo fator de inibição ou bloqueio do crescimento pelas implicações que traz em matéria de procura global.
A China está hoje mais longe das vastíssimas reservas e mão de obra rural que alimentaram o crescimento da desigualdade. Mas o padrão de desigualdade chinês não pode ser desligado do regime político-económico que o Partido Comunista Chinês protagoniza. O qual não tem sido capaz de contrariar a fortíssima desigualdade territorial instalada no país. Para além disso, apesar da mão dura contra a corrupção. Atentem no que Milanovic escreve: “(…) O PCC ainda mobiliza a maioria dos seus membros a partir dos “velhos” grupos sociais, mas os seus membros mais ricos provêm em larga medida das “novas” classes sociais. E para esses membros da elite, o pertencer ao PCC parece ser particularmente lucrativo: depois de controlar por todas as variáveis relevantes, descobrimos que o estatuto de membro do PCC está associado em termos estatisticamente significativos com os ganhos de rendimento apenas para os que são grandes proprietários privados. Ou os membros do PCC com maior poder político decidem deslocar-se para o setor privado ou, mais provavelmente, os que se tornaram ricos por sua própria conta acham que é útil reforçar o seu poder económico através do estatuto de membro do partido. Deste modo, os poderes económico e político coincidem para gerar uma elite que domina as alavancas de ambos os poderes”.
O Ocidente com pensamento mais benigno em relação à China sempre acreditou que o crescimento económico traria por via do reforço das classes médias um impulso para a democracia. A ingenuidade deste pensamento parece estar hoje mais clara. Acho que Milanovic tem razão quando refere que a crescente integração entre Partido e Novos Ricos, para além de comprometer a eficácia da mão dura contra a corrupção, lança a China para uma escolha complexa entre duas opções, oligarquia ou autarcia. Nenhuma delas parece ser favorável a uma economia mundial mais saudável.
Até estava disposta a ler este artigo, até porque considero que a China pode ser vista como modelo no que toca a arrancar pessoas da pobreza. Infelizmente, todo o primeiro paragrafo remete para um arrazoado de propaganda anti-China (e a frequência da Foreign Affairs é perigosa para uma análise objectiva) que me indipôs à leitura do restante artigo. Fico sem saber se oerdi mais propaganda ou, pelo contrário, análise útil.
ResponderEliminarAna Queiroz