quinta-feira, 4 de março de 2021

APOCALÍPTICAS MORTES POLÍTICAS ANUNCIADAS

 

        (Voz de Galicia, fotografia de Marta Fernández Jara - Europa PR)

(Desculpem a insistência mas a situação política espanhola é digna de um caso de estudo sob várias perspetivas. Uma delas é a da profunda crise e desorientação em que o principal partido da direita espanhola, o Partido Popular, se encontra, onde encontramos matéria fascinante para compreender a recomposição em curso da direita, não apenas em Espanha. Como sempre acontece nos casos de estudo há um problema recorrente – a tentação de extrapolar para outros contextos e aí está o fator crítico da sua aplicação.

O título “Apocalípticas mortes políticas anunciadas” refere-se à ideia muito propagada entre alguns comentadores políticos em Portugal de que a gestão política da pandemia no poder será fatal para os personagens que lhes caiu em sorte essa tarefa. É o caso, por exemplo, de Clara Ferreira Alves que investiu de modo truculento contra António Costa anunciando a sua morte política. Vá lá saber-se o que é que provocou esta súbita revelação da cronista, já a ela me referi em post anterior, mas acho que estamos perante aquelas frases assassinas que o síndrome do comentador inquieto que quer mostrar serviço acaba por determinar. Tenho uma grande relutância em aceitar acriticamente estas previsões apocalípticas de mortes anunciadas, essencialmente por uma razão. A ideia de que a erosão pandémica acontece apenas em quem exerce o poder é algo ingénua, já que fazer oposição em pandemia tem também as suas implicações, sobretudo para as formações políticas de populismo mais ou menos contido. Outra coisa é o que se passa com formações como o VOX em Espanha e o Chega cá pelo burgo. Nestes casos, a pandemia é foco que arde e que se vê e que dá proveitos, como aliás estamos a perceber com a toda a imbecilidade do negacionismo por aí a proliferar.

O caso do PP é paradigmático dos desafios de recomposição da direita mas esses desafios são bem anteriores à emergência da pandemia. Sabemos como esta tem fustigado o PP sobretudo do ponto de vista das dissonâncias de modelos de gestão da mesma em comunidades autónomas como a Galiza (a mais bem-sucedida com a liderança equilibrada de Feijoo), a região de Madrid (onde o furacão Ayuso tem provocado imensas dores de cabeça não apenas ao governo PSOE-PODEMOS mas também à liderança de Casado e a Andaluzia, em que o acordo PP-CIUDADANOS-VOX tem deixado muito a desejar em termos de eficácia governativa. Mas os problemas de adaptação do PP aos tempos de hoje ao mesmo tempo que o caso Barcenas dilacera as suas vísceras internas mais recônditas são bem anteriores à pandemia. O estilo de liderança em tom ameno e moderado de Rajoy deixou rabos de palha que baste e a chegada de Casado à liderança permanece ainda em águas revoltas, dada a agressividade do VOX que lhe morde os calcanhares.

Como sempre a pena impiedosa de Xosé Luís Barreiro Rivas é implacável (link aqui), neste caso referindo-se ao PP:

Por isso contemplam horrorizados como, enquanto o PSOE se move como um peixe em águas revoltas, eles movem-se como elefantes, mesmo em águas tranquilas. Por isso não têm mais horizonte que uma incerta viragem de poder que só pode chegar através de uma súbita desestabilização do sanchismo que ninguém antecipa – ou por uma milagrosa mudança de preferências dos eleitores, que tão pouco se vislumbra. E com esta bagagem receio que não vão reconstruir-se como alternativa de governo”.

A tentação de extrapolação destas tendências para outros contextos é grande mas exige cautela, entre outras coisas porque a tensão da sociedade espanhola não tem confronto possível com as nossas águas da animação política. Mas o que me importa sobretudo destacar é que a fragilidade de um governo como o do PSOE-PODEMOS lá vai cavalgando as ondas da pandemia, com erros, desconformidades, desorientação que baste entre poder central e autonomias, mas aguentando-se sabe-se lá como, pejorativamente designado de governo Frankestein, com os radicalismos nacionalistas à mistura. E até a maioria absoluta dos independentistas na Catalunha demora a eternidade que se tem visto para lograr constituir um Governo para a Generalitat.

Por isso, os nossos tão sábios comentadores ainda não compreenderam que não podem usar as mesmas categorias analíticas para tempos tão conturbados e de mudança.

As apocalípticas mortes políticas anunciadas estão nessa categoria.

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