(Ainda não nos vimos livres da pandemia, estou pouco otimista quanto a esse horizonte, e estamos inundados de curiosidades prospetivas sobre o que será o aftermath de tudo isto. Uma das regularidades que emergem dessas antecipações é a instabilidade política, Marcelo deve estar preocupado.
A literatura sobre o aftermath pandémico é muito variada. Desde os cenários sobre o turismo que vamos ter à transformação do mundo do trabalho, passando pela sociologia do consumo, a aceleração da transição digital, a organização do espaço urbano e sei lá o que mais, há toda uma variedade de prospetiva. Em alguns casos é mais do domínio da mais elementar futurologia que se trata do que de um efetivo exercício de prospetiva estratégica.
Tina Fordham do CitiGroup chama a atenção, e o World Economic Forum concede-lhe espaço de divulgação (link aqui), para o que ela designa de VOX POPULI RISK. O que é que a quadro superior do CitiGroup entende por este novo fator?
O que estará aqui em causa é uma opinião pública mais variável e volátil mas com a particularidade de estar a emergir em economias de rendimento intermédio e industrializadas, substituindo-se, de certo modo, à conhecida instabilidade política própria de regimes sujeitos a golpes militares a todo o momento e outros tipos de fenómenos insurrecionais. O investimento estrangeiro no seu cálculo económico tendia a internalizar este tipo de fenómenos, entrando por vezes em cumplicidades nada abonatórias da ética empresarial e sendo por vezes obrigado a suspender investimentos, ou mesmo a abandonar o “teatro das operações”.
Este novo tipo de instabilidade tem uma diferente natureza e o CitiGroup caracteriza-o de forma objetiva: “Uma mudança está a ocorrer através da qual o crescimento económico já não garante a estabilidade política; alimentadas por uma desigualdade crescente, emergem perceções quanto à corrupção das elites e ansiedades da classe média sobre a globalização, de modo que pode questionar-se se o VOX POPULI RISK irá transformar-se numa característica permanente dos negócios globais e do ambiente político?”.
Os analistas do CitiGroup registaram nos últimos três anos um aumento significativo dos valores de indicadores como o número de eleições, protestos de massas e quedas de governo, que vai de par com a emergência de um número mais alargado de partidos antissistema que o combatem aproveitando as suas condições de abertura e tolerância.
Não é difícil perceber que este entendimento da instabilidade política vai direitinho ao fenómeno do populismo que, embora apanhado em cheio pelo pela pandemia que não foi meiga para com as incompetências que o atravessam, continua apesar de derrotado pelos acontecimentos de má gestão pandémica a dominar a cena da instabilidade política.
Não ignoremos que os danos do populismo não são apenas ditados pelos atos dos seus principais protagonistas. Haverá que ter em conta os efeitos reflexos que ele provoca nos comportamentos de entidades que deveriam em princípio estar fora desse universo. Por outras palavras, os governos não populistas não deixam de ser afetados pela corrente.
(Guillian Tett)
É curioso como uma jornalista de mão cheia como Gillian Tett, chefe editorial do Financial Times e editora nos USA daquele jornal, acolhe (link aqui) o argumento de Tina Fordham e o estende à questão quente das farmacêuticas e das vacinas. “(…) qualquer um (a) que dirija uma farmacêutica por estes dias, ou que invista numa, não precisa apenas de pensar em riscos de patentes e pagamentos de dívida mas deve também ter em atenção o risco político. Por outras palavras, não é apenas a folha de balanço que importa hoje para um grupo farmacêutico – são também questões como “haverá uma guerra comercial?”, “Como é que podemos medir o populismo?” e “a política está estável na região?”
Acho que Gillian Tett tem razão quando chama a atenção para a ideia de que, apesar da pandemia poder ter intensificado estes fatores de instabilidade, será insensato admitir que eles desaparecerão com a entrada numa maior normalidade sanitária, por mais matizada que ela se apresente.
E em meu entender não basta, o que já é notícia, que os analistas de instituições como o CItiGroup se debrucem sobre as questões da instabilidade política e dos seus fatores explicativos. Seria interessante que essas grandes empresas discutissem e o que nos podem trazer para minimizar a sua quota parte de responsabilidade no problema. Pois a cenarização é para essas empresas algo estranha, pois são atores influentes desse processo. Basta pensar, por exemplo, no “curto prazismo” das suas decisões essencialmente focadas na rendibilidade imediata dos seus principais acionistas. Talvez beneficiem a prazo com essa mudança de atitude.
Nota final e complementar:
Paul Krugman escreveu no New York Times um artigo arrasador para a União Europeia e as suas instituições. Como é que estando o sistema de saúde americano a anos-luz do sistema europeu consegue os EUA um desempenho tão comparativamente mais favorável em matéria de processo de vacinação. Parece-me que Krugman atira bem no centro do alvo quando refere que: “o aspeto mais perturbador de todo este fiasco global é que ele não se deve simplesmente a alguns maus líderes. Pelo contrário, ele parece refletir falhas fundamentais nas instituições e nas atitudes. O projeto Europeu está numa perturbação profunda”.
Ver de longe por vezes ajuda.
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