(Este é o tema, abordado pela perspetiva dos interesses, que esteve na origem deste blogue e que nos últimos tempos nos fornece matéria suficiente para eternizar as razões que nos levam a escrever com a regularidade possível e sem que a página ou o écran em branco se transformem em pressão para lá das pressões aceitáveis. Nem sempre abordamos o tema de forma direta e por isso alguns posts parecem deslocados do tema central que não está esquecido, antes pelo contrário. Mas a pandemia, as barragens, o aeroporto, a transição climática e o problema da liberdade em contexto pandémico exigem que voltemos ao assunto, desta vez de forma direta.
O confronto entre interesse público e interesses privados adquire no contexto das sociedades ocidentais contemporâneas uma redobrada importância, já que, apesar da saudável resistência de algumas utopias, a tese do “CAPITALISM ALONE” de Branko Milanovic (The Belknap Press of Harvard University Press, 2019) tem vindo a impor-se de forma segura. A obra de Milanovic tão pouco discutida em Portugal, sinal da debilidade do nosso debate, parte do princípio de que pela primeira vez na história humana o mundo é dominado por um único sistema económico, o que faz centrar a abordagem nos rumos futuros deste sistema, cujos contornos futuros são incertos ou indeterminados. Neste contexto, partindo do princípio de que o sistema dominante se alimenta de interesses privados, a defesa do interesse público é cada vez mais importante, sob pena aliás da promoção do interesse privado poder minar o próprio sistema.
A questão é mais complexa do que aparenta pois o modo como o sistema capitalista se afirma nos países concretos é desigual, não só do ponto de vista da capacidade e presença do setor privado, mas também na perspetiva da força reguladora, do peso e da qualidade e efetividade com que o Estado exerce a sua função na economia e na sociedade em geral.
A pandemia veio sem dúvida desequilibrar tendências que vinham em progressiva afirmação. Talvez de modo algo precipitado há quem arrisque afirmações como a de que o neoliberalismo económico está enterrado e colocado numa vitrine para estudo e observação. De facto, pelo mundo fora, dos mais desenvolvidos aos menos desenvolvidos, as sociedades e as economias dependem para sobreviver da intervenção pública e o tempo é de exigir que essa intervenção seja o mais competente possível, de modo a que a resolução da questão sanitária não destrua os recursos do futuro e dê campo à iniciativa privada para recuperar atividade e investimento. Ou seja, por mais que isso nos incomode dados os custos que somos obrigados a suportar, estamos perante uma grande oportunidade de devolver ao CAPITALISM ALONE o equilíbrio de forças que ele estava vertiginosamente a perder entre a esfera pública e a privada.
A transposição do tema para a economia portuguesa confronta-nos com a profunda debilidade da esfera empresarial privada. A lenta mas sustentada afirmação dos grupos empresariais que o regime de Salazar-Caetano lá foi conseguindo promover desfez-se seja pela crise energética dos anos 70, seja pela transição democrática e inicialmente tempestuosa de Abril. A partir daí, a lenta caminhada assente sobretudo no binómio infraestruturas- não transacionáveis deu o berro com a exaustão do modelo e crise das dívidas soberanas. Foi o tempo da quebra da ilusão da PT como empresa global e a implosão do modelo BES-GES. A precipitada e ruinosa (e fraudulenta em muitos casos) campanha de privatização de joias da coroa na aflição de gerar receitas para TROIKA ver completou o quadro. E nos casos em que se ensaiou timidamente a preservação da propriedade pública a competência da gestão estratégica é pelo menos questionável. A avaliação de casos como a TAP, REFER e CP, por exemplo, está ainda por fazer com a distância e rigor suficientes, produzindo um cenário globalmente desastroso. Privatizações em série e impreparadas e gestão deficiente do que se mantém público dificilmente poderíamos ter pior, com tímidas exceções como parece ser a questão da gestão da água.
Todo este contexto desequilibrou a balança entre interesse privado e interesse público a favor do primeiro. E o pior é que esse desequilíbrio não se traduziu por uma crescente e saudável autonomia do setor privado face ao público, conducente ao seu fortalecimento. O nosso modelo orientou-se mais para a tentativa quase sempre conseguida de captura do Estado em proveito dessa pretensa autonomia. Emergiu nessa onda toda uma série de cumplicidades, de transumâncias e de influências, das quais os escritórios de advogados mais representativos se transformaram em verdadeiros artífices, com competências pagas a preços de ouro, alguns deles não hesitando em jogar habilmente dos dois lados, para penalização de um setor público cada vez mais depauperado de capacidade técnica. O “new management” focado nos aumentos de eficiência da intervenção pública deslumbrou muita gente, entrou pelo PS dentro com estrondo e amplitude, encantou obviamente o PSD e o interesse público foi progressivamente esbatendo-se. Uma análise mais profunda do nosso aparato legislativo determinaria a existência de marcas indeléveis dessa transformação e a partir do momento em que assume a forma de lei tudo passa a ser diferente.
Não consigo desligar a questão da venda engenharial da conceção das seis barragens da EDP à ENGIE francesa deste contexto que acabo de descrever nos parágrafos anteriores. Não tenho competência legislativa e técnica para avaliar se a EDP extravasou os limites decentes da interpretação da lei fiscal e se a sua dimensão e composição acionista se sobrepôs a uma devida fiscalização de operação tão trabalhada como o foi a venda da concessão. Não me admiraria que tenha simplesmente aproveitado as benesses da lei, tendo a evolução desta última apenas refletido. Também não me é difícil reconhecer que o pronunciamento do Movimento de Terras de Miranda e de alguns deputados do PSD, embora cavalgando um sentimento justo, se revelaram inicialmente bastante impreparados e sem trabalho de casa feito sobre o contexto legal em que a sua demanda se inscrevia.
Sou amigo pessoal do Ministro do Ambiente e por isso não tenho a distância necessária para me pronunciar sobre a sua intervenção e não dou importância às diatribes do Miguel Sousa Tavares. Mais do que o caso em si, o que me interessa relevar é o contexto de deriva perigosa em que a desvalorização do interesse público foi progressivamente caindo e da qual este caso das barragens da EDP é tributário. Essa deriva foi acompanhada de uma desvalorização da descapitalização técnica de muitos serviços e entidades públicos e sem capabilities da administração pública a sua captura pelo privado mais agressivo caminha por si. Entre os que se abespinham pelos impostos putativamente não cobrados estão provavelmente alguns que assinaram cândidos e serenos a onda de privatizações que se abateu com a TROIKA. Entre eles também não há vozes críticas do que os Países Baixos significam para alguns grupos empresariais portugueses.
Mas eis que senão a pandemia acontece e aqui d’el Rey todos se voltam de novo para o Estado.
Esta é uma das grandes interrogações da tal prospetiva do pós que referia no meu último post. Nunca mais provavelmente a relação público-privado será a mesma e por aí passarão os rumos do tal CAPITALISM ALONE de que nos fala o Branko Milanovic.
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