sexta-feira, 19 de março de 2021

A CAPITAL-ESTRELA DA POLÍTICA ESPANHOLA

 

(O meu observatório de leitura da política espanhola tem-me colocado no foco da política madrilena, onde vai decidir-se muito do lio em que a Espanha está mergulhada desde há algum tempo. É como se a Espanha regressasse ao seu ADN histórico, o relevo da capital-estrela que é Madrid e a sua importância como fator de geração de todos os antagonismos à mesma.

Um observador menos conhecedor da espessura histórica da Espanha e das suas fundações ficará seguramente atraído pela dinâmica de confronto, agitação e também de inovação que emerge das suas comunidades autónomas mais ou menos avançadas na extensão das suas competências. O que se tem passado pela Catalunha, a eterna vibração do País Basco, a profunda mudança política (aparentemente ainda pouco traumática) na Andaluzia, a quietude relativamente serena da Galiza, os assomos de Navarra, enfim dinâmicas e conflitos para todos os gostos, constitui em meu entender o melhor laboratório para estudar e compreender as agruras e dificuldades da organização territorial do Estado com autonomias, hoje apimentadas com a gestão logística da pandemia.

Uma das interpretações possíveis deste contexto desafiante consiste em valorizar a riqueza e diversidade dos posicionamentos regionais e não vou hoje entrar nessa complexa questão de saber se estamos perante “nações” (pelo menos a basca, a catalã e a galega), o que nos levaria à eterna apetência, pelo menos entre os socialistas, pelo modelo da Espanha das nações como única forma de evitar a desagregação da Espanha. Essa interpretação corresponde historicamente grosso modo ao período em que as autonomias conduziram o crescimento e a inovação em Espanha a níveis e ritmos de evolução apreciáveis. Ela está presente no discurso político português regionalista, que via essa dinâmica como uma espécie de contraprova à nossa anemia centralista.

Sem ignorar essa interpretação, que aliás partilhei em alguns escritos e apresentações públicas, nos tempos mais recentes tenho vindo a intuir que muita daquela dinâmica está profundamente ligada à ideia de contraponto ao centralismo de Madrid. Ou seja, talvez essa dinâmica apresentasse outros contornos se o centralismo de Madrid fosse mais inteligente, que não o tem sido e por isso é parte do problema da instabilidade política espanhola.

A organização territorial de Espanha pode ser vista grosseiramente e em caricatura como uma estrela com centro em Madrid, sendo isso particularmente visível no transporte aéreo. Ora, as duas últimas semanas políticas em Espanha parecem repor a ideia da estrela, ou seja, a “Batalha de Madrid”, que não se reduz hoje ao combate entre pijos (betinhos?) e espelerchados (esfarrapados?), mas que é bem mais ampla. Senão vejamos.

Tal como o documentei em post anterior (link aqui), um passo em falso de uma estrela fulgurante da política espanhola, Inés Arrimadas, em Múrcia, lançando uma moção de censura (derrotada) contra a presidência do PP da Comunidade Autónoma (carregada de suspeições de corrupção da mais grossa), precipitou um verdadeiro vendaval político à direita, com repercussões à esquerda. O passo em falso de Arrimadas foi o combustível ideal para um outro motor de combustão (desculpem a analogia que é pouco feminista) que é Isabel Diaz Ayuso, presidenta pelo PP da Comunidade de Madrid. Ayuso tirou partido do andamento, convocou eleições com o argumento de que o CIUDADANOS iria trair o acordo de governo e este último partido corre o risco de se esfumar no vento.

Mas o vendaval não se ficou por aqui. Rapidamente assistimos à dança macabra dos trânsfugas, numa triangulação PP, CIUDADANOS, VOX, com o PP a procurar usar e abusar desse movimento, que o Manuel Carvalho no Público considera (e eu assino por baixo) uma das manifestações mais horrorosas da política. O líder do PP tem aqui a grande oportunidade de tentar repor o comando da direita em torno do seu partido, que tinha sofrido um abalo até à raiz na Catalunha onde passou ao estado da irrelevância política. E, embora o combustível tenha vindo de Múrcia, é em Madrid que tudo se passa e por isso as eleições de 4 de maio retomam o que sabíamos a centralidade de Madrid.

Mas eis que à esquerda o passo em falso de Arrimadas teve também consequências. Pablo Iglésias, líder do PODEMOS, protagonista de guerra de guerrilha no interior do próprio governo de que era Vice-Presidente, num assomo de querer recuperar peso político deixa o Governo de Sánchez e sujeita-se a sufrágio eleitoral em Madrid. O 4 de Maio rebenta assim de significado. Iglésias, nos últimos tempos, só conseguiu manter o fôlego com o resultado do En Comu na Catalunha (que não perdeu nem ganhou deputados), já que sondagens e eleições galegas reduziram o PODEMOS a uma expressão incomparavelmente inferior ao mediatismo de Iglésias. Entretanto, a sua proposta de coligação à esquerda com o movimento Más Madrid de Iñigo Errejón (saído do PODEMOS) foi rejeitada e o PODEMOS vai sozinho à luta do 4 de Maio.

As sondagens disponíveis dizem o que a história política nos diz de situações similares. A impetuosa Ayuso reúne condições para reforçar votação e ganhar o estrelato no próprio PP, o CIUDADANOS desaparecerá muito provavelmente do xadrês político madrileno, Iglésias cairá no abismo ou aguentar-se á à justa (com a incógnita se conseguirá ganhar votos ao PSOE e ao Má Madrid) e a candidatura de Gabilondo no PSOE parece condenada à mediania. Outro fator de incerteza é o número de trânsfugas de que o PP irá beneficiar.

Por isso, me parece que regressamos à centralidade farol da dinâmica política em Madrid. Foco por conseguinte no 4 de maio, com maior ou menor intensidade de pandemia.

Mas os efeitos não ficaram por aqui. Sánchez terá respirado de alívio com a decisão heróica ou suicidária (veremos) de Iglésias, reduzindo a tensão governamental. O PODEMOS desce de segunda Vice-Presidência (Iglésias) para terceira Vice-Presidência, neste caso com a ministra do Trabalho Yolanda Diáz, galega e afeta ao Partido Comunista Espanhol. Dizem as crónicas que Yolanda não tem o mesmo espírito de guerrilha de Iglésias e que por aí Sánchez pode esperar menos tensão política na governação. Embora reconheça a consistência política da Ministra do Trabalho, parece-me que o facto do PODEMOS e Iglésias irem a votos em Madrid, não o irão fazer sem armas na mão. Ora, essas derivam sobretudo da sua presença no Governo. Daí que Sánchez pode contar com a mesma ou mais tensão, pelo menos até 4 de maio.

Cheira-me que depois de 4 de maio nada ficará como dantes. Foco por isso na batalha de Madrid.

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