sábado, 6 de março de 2021

A PACIÊNCIA

 

                        (Na mitologia grega, segundo alguns, não para Platão, Cronos,deus do tempo e rei dos titãs é filho de Urano, o céu estrelado, e Gaia, a terra)

(Cresce a reivindicação pelo desconfinamento o mais rápido possível. Entretanto, no contexto de curvas em decréscimo, novos casos, internados e número de camas ocupadas em cuidados intensivos, uma variável revela um comportamento que impõe cautelas – o famigerado Rt, embora abaixo da unidade, tem revelado tendência para crescer. Tempo para ler alguém que tem a sabedoria dos livros e de quem olha de fora, Alberto Manguel.

Alberto Manguel é um intelectual errante, agora radicado em Lisboa, na freguesia da Misericórdia, na sequência da oferta da Câmara Municipal de Lisboa para acolher a sua biblioteca que aguardava desempacotamento e fixação há já algum tempo e que prazer deve ser recolocar aquela fabulosa biblioteca nas estantes. A fixação do espólio num palácio antigo recuperado para o efeito vem acompanhada da criação de um centro de investigação sobre a leitura. A ideia parece-me interessante e criativa, que resumiria na tentativa de por via da literatura recuperar alguma áurea de multiculturalidade e globalidade que já passou pela Cidade em tempos idos. Estou curioso o que têm Medina e Moedas a dizer sobre esta matéria da multiculturalidade global nos seus projetos políticos para Lisboa.

O texto que Alberto Manguel assina na revista do Expresso é uma verdadeira preciosidade. Tal como nos mostrou Eduardo Lourenço, e que só Miguel Real tem ensaiado prolongar essa tradição, a visão dos portugueses sobre si próprios é sempre distorcida, seja pela eterna ideia de nos sentirmos sempre maiores do que somos, sobretudo hoje, confinados ao retângulo, seja pela esquizofrenia do tudo ou nada, como aliás se viu comparando a primeira e a terceira vaga da pandemia. Por isso, a visão dos portugueses elaborada de fora ou como recém-chegados como é o caso de Manguel é uma espécie de terapia para encontrarmos o equilíbrio sobre o que somos no mundo de hoje.

Manguel pratica uma interpretação dos lugares que visita com uma curiosa metodologia de trabalhar primeiro as caricaturas geográficas da impressão mais ou menos espontânea, que eu costumo designar de visitante acidental, que Manguel caracteriza como as impressões do “demónio mudo” que o espelho imediato proporciona (numa alusão ao Padre António Vieira) com a perspetiva de outros encontros e perspetivas que só o tempo da permanência num lugar é capaz de proporcionar. Assim, depois de se fixar nas posições de Fernando Pessoa sobre o provincianismo estrutural de ser Português ou na incapacidade dos Portugueses serem irónicos (a prática da ironia é só para alguns), Manguel trabalha sobretudo a categoria que segundo ele melhor caracteriza este povo, o culto e veneração da Paciência, “a qualidade portuguesa modesta, lenta, elegíaca e contemplativa que nos permite refletir sobre a nossa existência temporal enquanto estamos espacialmente confinados”. Caro Alberto Manguel acertaste na mouche e segundo esse critério sou um Português de gema.

Talvez seja a paciência com que gerimos este novo confinamento que explica que tenhamos passado num ápice dos piores na Europa em termos de novos casos por 100.000 habitantes para o estatuto de melhores segundo esse mesmo critério, curiosa, espantosa e olimpicamente ignorado pela nossa imprensa assanhada que não consegue regozijar-se com este resultado e também com um comportamento de vacinação até agora em linha com os melhores da Europa para as vacinas que recebemos. Manguel interroga-se se Cronos, o titã mitológico da ditadura do tempo mastiga mais devagar e refletindo entre duas garfadas. Resta saber se esta paciência é ou não o outro lado da moeda do atraso na chegada a Portugal das mudanças tecnológicas culturais e revolucionárias. Mas também aqui a sabedoria da paciência pode proporcionar a Portugal o estatuto de um “late comer” mais inteligente. Ou seja, podemos aplicar a febre da inovação que outros utilizam vorazmente com a inteligência de aprender com os erros das noviças mudanças. 

Vamos precisar de muita paciência para gerir um desconfinamento com um Rt em crescimento. E o risco do tudo ou nada se sobrepor aquela é elevado. Que a Paciência nos acompanhe.

 

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