terça-feira, 30 de março de 2021

MODA VOYEUR

 


(Não é o que estarão eventualmente a pensar. Este vosso amigo não ensandeceu e não enveredou no confinamento pelo voyeurismo. Trata-se simplesmente de registar um pequeno desvio no rumo da reflexão trazida habitualmente a este espaço e passar os olhos pelo marketing online da moda galega, particularmente do grupo Adolfo Dominguez. Vários motivos justificam a minha proximidade e interesse pelo que poderíamos designar de auge, queda e reabilitação daquele expoente da criação galega.

Quando comecei a privar com alguns intelectuais, universitários e profissionais galegos do planeamento como Emilio Pérez Touriño que chegou a Presidente da Xunta de Galicia num governo regional de coligação PSG – PSOE galego e Bloco Nacionalista Galego, Anxel Viña, Juan Dalda (saudoso urbanista do difuso galego já falecido), Xoaquin Alvarez Corbacho (colega de doutoramento em York de Cavaco Silva e por isso com algumas histórias picarescas), Xulio Pardellas e tantos mais, a marca Adolfo Dominguez estava no seu auge. Desde os tempos da célebre frase “La arruga es bella” (de que tanto gostava o também saudoso José Maria Cabral Ferreira da CCDR Norte), a marca emergia como um sinal da modernidade galega, não nos termos de uma produção industrial de massa que a Zara e seu complexo de marcas derivadas e conexas iriam ocupar com estrondo e domínio quase completo, mas de uma modernidade que inscrevesse o bom gosto no casual urbano que atrai tanta gente (como eu, tenho de o dizer). Arriscar-me-ia a afirmar que a identificação com a marca tinha alguma coisa de “político” no sentido de que definia uma postura urbana, o que para a sociedade galega ao tempo ainda marcada pelo rural e pela inserção que o PP de Fraga Iribarne tinha nesses contextos representava uma prova de confronto com essa mancha e tradição de ruralidade. Das cidades galegas ao urbano difuso das Rias que Dalda descrevia tão bem tratava-se então de afirmar a urbanidade como sinal de modernidade e de esperança na mudança.

Foi nesse mesmo tempo que começaram os estudos de suporte à formação do Eixo Atlântico, inicialmente protagonizado do ponto de vista político pela aproximação entre Carlos Príncipe (presidente socialista de Vigo) e de Fernando Gomes (presidente socialista do Porto). A lógica do sistema urbano do Eixo Atlântico correspondia então a essa necessidade de introduzir na cooperação Galiza-Norte de Portugal a dimensão do sistema urbano, a única em que o Norte tinha algo para oferecer dada a maior dimensão comparativa dos seus municípios.

O projeto da Adolfo Dominguez haveria de passar do seu auge a um período de declínio, que aliás nunca vi suficientemente estudado, mas que sempre interpretei como um modelo de “passo mais largo do que a própria perna”. A aventura por uma postura mais agressiva na economia global, sobretudo quando comparada com o profissionalismo imbatível da Zara, não encontrou inicialmente no modelo familiar da marca as competências necessárias e a crise de 2008 haveria de acentuar esse declínio. Pensou-se que seria o toque de finados da marca, ela passou por problemas de crescente afirmação e identidade e esperou-se o pior, aliás com cisões familiares.

Nos últimos tempos, não sei que alimentação de novas competências foi o grupo familiar alvo, a marca parece reabilitada e o marketing on line entrou em força e com uma qualidade de design criativo apreciável. O contexto de identificação com a marca já não é obviamente o mesmo, a sociedade galega alterou-se profundamente e aquela modernidade urbana que tinha uma conotação de esperança política teve a sua experiência de governação falhada com o governo Pérez Touriño coligado com o Bloco Nacionalista Galego. A direita do PP foi-se apropriando progressivamente da modernidade urbana e não tem hoje alternativa credível na Região.

É por isso de uma outra identificação com a marca que temos de falar e que aparentemente a Adolfo Dominguez tem vindo paulatinamente a construir de novo, adaptando-se aos novos tempos.

A imagem acima e a que abre o post estão separadas no tempo de cerca de 3 anos (2018 versus tempo de confinamento). O Sé Más Viejo de 2018 representou a tentativa da marca de reconstruir para os novos tempos a ideia de La Arruga, que tanto pode ser interpretada como uma adaptação proativa aos tempos do envelhecimento (do próprio Adolfo também é claro) ou como uma antecipação da circularidade. A marca começou de facto a utilizar tecidos e fibras recicladas a partir de roupa descartada.

A imagem que abre o post é de hoje e cobre a campanha “EPISODE II VOYEUR –“Who believes themselves unobserved” que começa com uma imagem de uma praça de Ourense, terra-Mãe da marca (link aqui).

Vejo a campanha e não posso deixar de me interrogar. Com “La Arruga es bella” a identificação era cristalina e muito mais do que gostar de uma peça de vestuário. Pelo contrário, a atração pela beleza destas imagens a preto e branco é espontânea, mas mais efémera porque ficamos sem saber qual a fonte da identificação. Talvez uma alegoria dos tempos de hoje.


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