sexta-feira, 12 de março de 2021

UMA COISA RIDÍCULA!

Passando os olhos pelas capas dos matutinos de hoje, sou surpreendido pela do “Jornal Económico”, onde o ministro dos Negócios Estrangeiros responde – com a devida presunção, sublinhe-se – às críticas que foram feitas aos gastos da Presidência Portuguesa. Adepto convicto da ideia de que o ataque é a melhor defesa, Augusto Santos Silva volta a malhar, qualificando rotundamente tais críticas de “uma coisa ridícula”. O assunto não teria grande significado não fora o facto de o alerta inicial ter vindo do site do Politico, algo que é literalmente visto por toda a gente interessada em temas europeus (sobretudo lá fora ou fora daqui); ao que acresce o facto de o assunto ter sido abordado na pequena crónica de opinião semanal de Miguel Poiares Maduro (MPM) na “TSF” (ver reprodução abaixo). Ou seja: a “coisa ridícula” mereceria um pouco mais de detalhe explicativo, designadamente no tocante a algumas acusações graves que constam da dita crónica de MPM (afinal, um cidadão que intervém regularmente na nossa praça pública e será merecedor, até prova em contrário, de alguma credibilidade). Daí que conclua com a afirmação de que a democracia tem regras que, por muita que seja a experiente esperteza de quem exerce o poder, não podem ser tão olimpicamente ignoradas.

 

“No filme Fight Club, a certa altura um dos personagens diz que compramos coisas de que não necessitamos, com dinheiro que não temos, para agradar a pessoas de que não gostamos. Esta frase veio-me à memória ao ler um artigo do Politico, o principal jornal europeu, que descrevia de forma embaraçante alguns dos gastos com que a Presidência Portuguesa da União Europeia pretende agradar à Europa. Esses gastos são apresentados como supérfluos e incompreensíveis, em particular mas não apenas no quadro de uma Presidência que em virtude da pandemia irá ter poucas ou nenhumas reuniões presenciais. É importante dizer que não é incomum os países oferecerem pequenas lembranças simbólicas, como uma gravata ou um lenço com um logo da sua presidência. O que chocou o jornal europeu foi não apenas a dimensão dessas despesas mas a sua natureza. Algumas são apresentadas como incompreensíveis – fatos para motoristas, por exemplo, quando é de supor que os motoristas do Estado já os têm; outras são despesas supérfluas que, num contexto de crise económica e social, são difíceis de justificar; e existem ainda despesas que se tornaram totalmente desnecessárias face ao facto de a Presidência ter deixado de ser, em boa medida, presencial. Poder-se-ia pensar que parte dessas despesas tivessem sido planeadas e contratadas muito antes de sabermos que a Presidência iria ter lugar num contexto de pandemia – infelizmente, viemos a descobrir o exato contrário. Um artigo do “Observador” permitiu-nos ficar a saber que pelo menos uma parte significativa dos contratos foram feitos pouco antes do início da Presidência e, consequentemente, por ajuste direto – mais de duzentos contratos, correspondendo a um total de oito milhões de euros em ajustes diretos. É assim ainda mais incompreensível que, tendo o Estado Português esperado até tão tarde para fazer os contratos, não tenha tido em conta que, face às restrições impostas pela pandemia, muitos já não se justificavam. Mas o pior é que ficamos também a saber que alguns desses ajustes diretos foram atribuídos a empresas com poucas semanas de existência e sem qualquer atividade anterior. Isto levanta, inevitavelmente, fortes suspeitas de que essas empresas foram criadas com o simples objetivo de virem a beneficiar desses contratos do Estado. Até agora não ouvimos qualquer justificação do Governo, mas também não houve qualquer clamor público a este respeito. Que o Governo não se queira justificar não é aceitável mas percebe-se. Que não tenhamos a capacidade cívica de impor essa justificação é o mais preocupante. Apenas a associação “Transparência e Integridade” o exigiu. Isto lembra-me a forma como se tem falado publicamente da necessidade de ter um “Portal da Transparência” para os próximos fundos europeus, onde possa ser possível consultar todos os apoios e investimentos feitos. O que ninguém parece saber é que a lei que rege o atual programa de fundos já impõe essa transparência num portal onde deveriam constar os apoios, beneficiários e resultados contratualizados e atingidos. Talvez devêssemos começar por exigir que se cumpra esta obrigação legal, em vez de aceitar que seja convertida em mais uma mera promessa para o futuro. Substituímos o que devíamos, e até já podíamos fazer, por novas promessas do que iremos fazer. Fechar os olhos serve-nos para ignorar o que não estamos a fazer e sonhar antes com o que desejaríamos fosse feito no futuro. Mas os outros medem-nos, não pelo que dizemos que iremos fazer, mas sim pelo que fazemos agora. Se continuarmos a prometer ser diferentes sem mudar, podemos enganar-nos a nós próprios mas não aos outros. Com exemplos destes perde-se legitimidade para qualificar como repugnantes manifestações de desconfiança dos nossos parceiros europeus. Não bastará, seguramente, continuar a comprar-lhes coisas com dinheiros que não temos e não gostando deles.”

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