segunda-feira, 22 de março de 2021

PATENTES E VACINAS

 


(Se outros fossem os tempos, estaríamos em excelentes condições para discutir políticas de inovação e defesa/regulação da propriedade intelectual. Mas os tempos atuais não nos permitem a distância necessária ao tema das vacinas e das patentes. É que todos sabemos que, fartos de ouvir falar de trade-off’s e outras invenções horríveis dos economistas, saúde e economia em conflito, só um generalizado e equitativo processo de vacinação nos protegerá simultaneamente a saúde e viabilizará a recuperação da economia global. Essa convicção sobrepõe-se a qualquer discussão, por mais elegante que ela seja, das vantagens e desvantagens da inovação com defesa da propriedade intelectual.

Nos gloriosos e também perturbados anos 70 (1976), num livrinho da saudosa editora François Maspero, mais propriamente da Petite Collection Maspero (La Découverte), Yves Lacoste, editor e fundador da também saudosa revista Hérodote, em tempos em que a cultura francesa nos valia de alguma coisa, publicava o desconcertante “La Géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre (A geografia serve antes de mais para fazer a guerra).

Creio que hoje ainda vivo, se Yves Lacoste estivesse no ativo talvez pegasse no tema das vacinas e proclamasse que também as mesmas podem servir para fazer a guerra ou pelo menos alguma diplomacia agressiva.

A transformação dos processos de invenção (a criação das novas ideias) em inovação (processos de criação de valor) é um tema apaixonante da economia, porque como muitos economistas como Joseph Schumpeter o conceptualizaram para sempre ele está no coração da dinâmica do desenvolvimento capitalista e, por muito que isso possa custar a alguns de nós, o capitalismo é hoje o único modo de produção reinante (como Branko Milanovic tem ultimamente insistido).

O trabalho que alguns economistas como Paul Romer fizeram em torno do que poderíamos chamar “a economia das ideias” veio trazer-nos novas perspetivas sobre o mundo da inovação em mercados não de concorrência perfeita, mas antes de concorrência imperfeita, senão mesmo em condições monopolistas. Como sempre os grandes avanços em economia resultam de abordagens e conceitos simples. Neste caso, trata-se de trabalhar dois conceitos que outros tinham descoberto bem antes. Dois conceitos que tratam de duas características dos bens e serviços: a sua (não) rivalidade, bens rivais e bens não rivais e a sua (não) excludência, bens excludentes e não excludentes.

Um bem diz-se rival quando a sua utilização por um dado indivíduo impede a sua utilização por um outro indivíduo. Ora, por definição, as ideias são não rivais. Quando são conhecidas podem ser utilizadas por toda a gente, todos podemos utilizar o teorema de Pitágoras. A mesma ideia não tem de ser duplicada para viabilizar a duplicação do produto que foi obtido a partir dessa ideia.

Mas esta característica da ideia suscita um paradoxo que é necessário explicar, senão não compreenderemos a importância económica das ideias naquilo que até chamamos a economia do conhecimento.

O mistério ou paradoxo é este: se as ideias não são rivais e permitem a sua utilização simultânea por muitos agentes económicos, então como poderemos explicar que as empresas inovadoras gastem balúrdios a produzi-las criando valor? Qual é o racional que subjaz ao investimento-inovação, leia-se criar valor económico a partir das ideias nas empresas? Como é que o “descobridor” da ideia (vendendo-a a alguém ou assegurando ele próprio essa criação de valor) é remunerado? Todos os investidores inovadores são bondosos e magnânimos oferecendo valor à sociedade?

O mistério resolve-se recorrendo a uma outra característica das ideias. Elas podem ser excludentes, sob certas condições de regulação e de tempo de proteção (a propriedade intelectual). Ou seja, através de uma patente, o autor da ideia é protegido e possibilita ao seu “inovador” (quem cria valor a partir da mesma) desenvolver a sua aplicação em condições de lucro protegido ou de monopólio. Lembro que a patente não protege que um outro concorrente e por meios não ilegais não possa a partir do produto que a aplica descobrir essa mesma ideia.

Apliquemos este raciocínio simples à questão das vacinas que nos trazem a esperança de recuperar pelo menos parte da mobilidade e da vida que consideramos normal.

Muitas das ideias que tornaram possível a produção de vacinas COVID-19 em tempo tão curto são bens não rivais, resultam de conhecimento publicado seja em meios formais de disseminação do conhecimento (as revistas), seja de meios informais que hoje unem e dinamizam a atividade científica (blogues e outras modalidades de publicação rápida de conhecimento). Porém, algumas descobertas cruciais e a sua transformação em vacina podem entretanto estar patenteadas, já que a investigação que lhe deu origem suscitou a necessidade de financiamentos específicos dada a sua magnitude avultada. A patente introduz a excludência. Por seu lado, a sua transformação em vacina de produção em massa para idêntica distribuição, consagra investimento avultadíssimos, riscos elevados e acentua por seu lado o caráter da excludência.

Mas a questão é mais complexa do que postura de manual. Se bem que o investimento privado tenha estado presente (AstraZeneca, Pfizer, Biontech, Johnson&Johnson) no esforço de produção da vacina, a participação do investimento público no financiamento da investigação e do processo de transformação para a produção industrial é avultadíssimo. Mas a presença pública não se limitou a essa quota parte de financiamento. As empresas privadas tiveram garantidos os seus primeiros mercados. Os governos pagaram a diferentes preços (por exemplo a vacina da Astrazeneca-Oxford é bastante mais barata do que a da Pfizer-Biontech) uma vasta produção com base apenas nas garantias prestadas pelos produtores das vacinas às agências internacionais, antes da aplicação em massa que constitui o verdadeiro teste-experiência para o desenvolvimento futuro da vacina.

É neste contexto que emerge o debate de hoje. Por um lado, a pressão para que os governos dos países mais avançados exerçam o seu poder sobre as empresas produtoras das vacinas já aprovadas ou em aprovação para que divulguem os processos que as produziram, partilhem o conhecimento com os países mais pobres (que tenham capacidade para isso) e permitam a aceleração da sua produção industrial. Por outro, a pressão para que as regras do fomento da inovação não sejam quebradas. Ou seja, bem público (não rival e não excludente) versus bem não rival mas excludente.

Nos últimos dias, uma nova frente foi aberta. Em fins de março, será confirmada uma patente, controlada pelo governo americano, relativa a uma descoberta científica da engenharia molecular que se tem revelado crucial na rapidez com que os avanços na produção das vacinas COVID-19 foram concretizados. A origem da descoberta está no Darmouth College e no Scripps Research Institute. Foi com base nessa descoberta que a vacina da Moderna começou a ser elaborada e a BionTech já pagou ao governo americano o licenciamento dessa tecnologia.

Por outras palavras, o Governo de Biden tem neste momento um poder que nenhum outro governo possui. Comparado com este argumento, o peso negocial da Comissão Europeia é uma brincadeira, dando de barato que os contratos de compra foram bem redigidos, o que dizem as crónicas não ser de todo verdade.

Vai o governo de Biden explorar esta situação para levar as farmacêuticas a uma política de distribuição mundial mais equitativa que assegure uma efetiva proteção mundial, a única que consegue controlar uma pandemia?

Será que a tese do bem público vai predominar que não seja apenas pela convicção de que se o mundo não estiver vacinado e imunizado ninguém estará a salvo num quadro de recuperação da globalidade?

Com outra distância, teríamos condições para um debate sério entre ciência aberta e ciência com proteção de propriedade intelectual. Não temos essa distância. A normalidade da nossa vida está disso dependente e por isso não é uma questão de debate. É uma questão de justiça e de necessidade.

Nota final:

Selam Gebrekidan (a partir de Londres) e Matt Apuzzo (a partir de Bruxelas) assinam no New York Times de 21 de março um excelente artigo sobre a importância do controlo americano da patente da descoberta científica da engenharia molecular que permitiu acelerar uma grande parte das vacinas em distribuição (link aqui).

Moral da história: a União Europeia pode ser um bloco económico de respeito, mas em matéria de poder os Europeus parecem andar a brincar às casinhas, por muito que custe à nossa Presidência.

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