(Depois de ter passado mais de três horas a participar no debate de discussão pública do PRR centrado na sua componente 6 das Qualificações e Competências, fico de novo com a estranha sensação da clara desconformidade entre o tom sereno e construtivo da sessão e a atoarda das críticas veiculadas pelas principais agendas mediáticas. Não é coisa nova que apareça nas minhas reflexões. Para as pessoas que têm alguma coisa a dizer sobre estas matérias e que sabem do assunto o tom nunca é de crítica gratuita.
Quatro Ministros presentes na discussão, moderada pela Ministra do Estado e da Presidência Mariana Vieira da Silva e com participação da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, do Ministro da Educação e do Ministro da Ciência e do Ensino Superior não é coisa pouca (link aqui para o You Tube de toda a sessão). Talvez com um número excessivo de intervenções que a alongou um pouco excessivamente, só a intervenção inicial do Professor Alberto Melo, com os seus 80 anos plenos de lucidez, justificaria o investimento de preparação da participação nesta sessão.
Considero que o bloco das Qualificações e Competências no PRR (componente 6), a que se poderia juntar a componente 15 da Escola Digital, constitui uma das mais equilibradas dimensões do PRR, sobretudo porque se percebe de que modo o PRR se articulará com o Quadro Financeiro Plurianual da programação dos FEEI no PT2030. Para este último estarão reservados os temas de continuidade entre períodos de programação, remetendo para o PRR os temas de dimensão mais inovadora no plano institucional e de resposta mais orientada para reformas e mudanças estruturais do sistema de educação e formação. Compreende-se a lógica, não me parece desajustada, antes pelo contrário parece-me antes anunciando bom senso e sentido estratégico de utilização dos recursos.
Globalmente, todas as intervenções me pareceram muito contributivas e interessadas em tirar o melhor aproveitamento possível dos recursos do PRR, longe do ambiente de comentário desinformado e gratuito de ruído que o documento em discussão pública tem suscitado nas agendas mediáticas.
Organizei a minha intervenção do ponto de vista da interpretação sobre o PRR pode representar. O Plano traz a meu ver uma oportunidade de realizar investimentos que combinem a dimensão da recuperação económica com a necessidade de aprofundar e consolidar a mudança estrutural que atravessa a economia portuguesa. Face a essa interpretação resulta desde logo um domínio para o qual o PRR tem alguns contributos mas que deveriam ser mais intensos e sistemáticos. A economia portuguesa necessita de criar mais espaços institucionais de concertação e ajustamento entre a oferta de qualificações e a procura de competências suscitadas pela resposta a carências e desafios estratégicos. Esse (des)ajustamento é por vezes intenso e em muitos casos não se resolve com o tempo. As empresas e o setor público e institucional que procuram essas competências não encontram frequentemente na oferta disponível o que precisam (outra questão é saber se as encontrassem estariam dispostos a remunera-las a um salário decente e compatível com essas qualificações). Não abundam os espaços para essa mediação ser realizada, o que significa pelo menos duas coisas: (i) persiste a desinformação mútua entre o sistema de educação e formação e as empresas e outras fontes de procura de competências; (ii) continuam necessidades por satisfazer e a prospetiva estratégica das competência deixa ainda a desejar. Diferentes escalas territorial, regional e sub-regional, permanecem vazias de concertação nesse domínio, reduzindo a eficiência do ajustamento que o mercado não consegue fazer.
Um segundo tópico da minha intervenção incidiu na necessidade de uma maior clareza no modo como as qualificações e competências no PRR se articulam com as três dimensões de prioridade que o regulamento do mecanismo europeu de recuperação e resiliência estabelece – resiliência, transição ecológico-climática e transição digital. Talvez esta última seja a que está melhor situada. Mas, independentemente da pertinência dos principais domínios de proposta do PRR, não é totalmente líquido o modo como o sistema de educação e formação apoiado pelo PRR contribuirá em termos de competências para a promoção da resiliência e da transição climática. O documento ganharia em coerência estratégica se melhorasse a legibilidade desses contributos.
O terceiro tópico incidiu na minha perspetiva de que o sistema de educação e formação tem de conseguir encontrar um equilíbrio mais satisfatório entre a melhoria de qualificações de jovens e das suas condições de empregabilidade (os fluxos das novas qualificações) e o combate ao défice de qualificações entre os ativos adultos, que aliás o PRR acusa como um défice fundamental a colmatar. O plano coloca finalmente de novo a formação de adultos na agenda política, mas a vontade de não deixar para trás irremediavelmente ativos condenados a uma marginalização dos benefícios do desenvolvimento por força das suas baixas qualificações requeria a meu ver uma expressão ainda mais evidente. Vivemos períodos de intenso progresso tecnológico que a transformação digital vai reforçar. Esse progresso tecnológico tende a puxar mais pelas qualificações mais altas, produzindo o que nós economistas designam de skill bias (enviesamento das qualificações). A mitigação desse desvio exige entre outras dimensões que a formação de ativos continue o seu rumo. Os 110 milhões de euros para o Plano Nacional de Literacia de Adultos e os 140 milhões para o Programa Impulso Adultos (formações de curta duração no ensino superior) constituem boas novidades do PRR mas é necessário fazer mais. Até porque o Portugal 2020 desvalorizou bastante a formação de adultos.
Um quarto tópico disse respeito à absoluta necessidade de contrariar a fraca procura de formação que as PME realizam em Portugal e à reduzida tendência para ter em conta o retorno do investimento em formação. Parece-me impensável que, embora descontando as dificuldades da pandemia, as situações de lay-off não tenham dado origem a uma procura de formação de trabalhadores, organizada pelas próprias empresas. É um problema estrutural da procura de formação em Portugal, fortemente alimentada pela falta de espaços institucionais de encontro e ajustamento entre empresas e sistema de educação e formação.
E finalmente deixei a nota sobre a necessidade de acompanhar os investimentos de modernização de infraestruturas e de equipamentos educativos e de formação ao serviço da criação de melhores condições de inovação na aprendizagem com uma simultânea e coerente formação de professores e formadores. A Escola ou a Formação digitais não são apenas uma questão de equipamentos, software e condições laboratoriais renovadas. Implicam também a presença de professores e formadores preparados para tirar partido das inovações tecnológicas e para avaliar o que a experiência de ensino on line em confinamento proporcionou.
E foi assim.
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