quarta-feira, 3 de março de 2021

MAIS SOBRE O PRR

(cartoon adaptado de http://www.antoniojorgegoncalves.com

Como diria o Carlos Tê pela voz do Rui Veloso, “o prometido é devido” (também há quem diga que é “de vidro”, dado o caráter sempre frágil e melindroso de tudo quanto são promessas). Juntei-me com dois amigos e referenciamos as seguintes onze considerações que tivemos por pertinentes em sede de consulta pública do PRR, não sem assumirmos a priori um caráter incontornável (que, aliás, teríamos tendido a não dar por adquirido sem uma descida a maiores níveis de pormenorização negocial e regulamentar) para as “determinações” (ou, por vezes, simples recomendações) provenientes da Comissão Europeia:

(i)     Saudando a arquitetura geral do “Plano”, assim como não questionando a justeza associada à maioria das suas propostas de concretização em resposta a “constrangimentos estruturais”, gostaríamos de reforçar a ideia que nos é cara de que o mesmo não apenas enferma de uma certa ausência de uma visão e estratégia explícita e devidamente focada nas suas várias componentes (assim distinguindo o prioritário em termos dirigidos à competitividade da economia portuguesa e à sua transformação estrutural do tanto que é necessário em termos de acréscimos de coesão social e territorial) como padece de metas qualitativas e/ou quantificadas, mesmo que estritamente enquadradoras, que lhe possam consubstanciar mais rigor e uma maior adesão à realidade sob intervenção desejada. 

(ii)    Neste quadro, a chamada “Dimensão Resiliência” é um bom elemento de ilustração, designadamente na medida em que nela se torna muito clara um mix não clarificador que integra importantes questões em sede de respostas sociais e de saúde, bolsas de pobreza, infraestruturas e gestão florestal e hídrica (responsabilidades do Estado propriamente ditas), por um lado, e aspetos mais verdadeiramente dirigidos à mudança estrutural da economia e sociedade portuguesas como são o investimento e inovação e a qualificação e competências (intervenção facilitadora e agilizadora do Estado na economia), por outro. 

(iii)  Nestas últimas áreas, estruturantes pois para o futuro do País na medida em que nelas se situa(rá) o potencial efetivo da sua criação de riqueza, julgamos absolutamente marcantes vários dos investimentos sugeridos, pese embora querermos sobretudo sublinhar quanto nos parece essencial trabalhar adequadamente e de modo fino (porque o Diabo se esconde nos detalhes...) as chamadas “Alianças Mobilizadoras de Reindustrialização”.

(iv)   De entre as precauções que consideraríamos neste plano, salientamos quatro imperiosidades principais a reter: que tais “alianças” sejam inequivocamente company driven, que tais “alianças” contemplem obrigatoriamente comprometimentos empresariais em sede de ciência, tecnologia e inovação (incluindo, naturalmente, a presença de Instituições do setor), que tais “alianças” favoreçam uma maior densificação do tecido institucional nacional (quer por via da valorização da presença das autarquias locais, quer por via da chamada à participação de movimentos associativos e da sociedade civil) e que tais “alianças” sejam avaliadas na sua razão de ser de modo aberto, competente e inteligente (que o mesmo é dizer que o sejam pelo seu conteúdo intrínseco, sem a dominância de critérios estritamente burocráticos e promotores da mentira e numa base de flexibilidade e máximo de confiança possível nos promotores).

(v)    Importará também, do nosso ponto de vista, que seja definida uma nítida distinção entre as referidas “Alianças Mobilizadoras de Reindustrialização” e outras agendas e missões que integram a “Componente 5” da “Dimensão Resiliência” (estas sim, bem mais science driven ou policy driven).

(vi)   Importará ainda, por fim, não escamotear uma imprescindível articulação entre as referidas “Alianças Mobilizadoras de Reindustrialização” e a “capitalização de empresas e resiliência financeira” a que surge associada a criação do Banco de Fomento, único modo de assegurar músculo e ambição (nem sempre small is beautiful...) à marcante transformação estrutural que lhes deve estar subjacente neste momento histórico.

(vii) Aflorando apenas as duas outras “dimensões”, Transição Climática e Transição Digital, deixaremos apenas aqui a preocupação de algum aparente excesso de voluntarismo público a elas associado, o qual necessariamente se repercutirá na prática em operacionalizações em matérias mal estudadas e deficientemente preparadas, em operacionalizações demasiado politicamente controladas (no mau sentido, ora porque eivadas de “corporativismo” ministerial ora porque eivadas de marketing político tout court) e/ou em operacionalizações demasiado centradas naquilo que vulgarmente se designa por “suspeitos do costume” (internos ou externos). 

(viii)  Julgamos não ser de todo despiciendo aqui deixar uma liminar nota crítica quanto à inexistência fundamental de qualquer esforço de territorialização das medidas a serem aplicadas no âmbito do “Plano” (excetuando o caso óbvio de grandes projetos com destinatários diretos bem percetíveis), aspeto tanto mais justificativo desta nota quanto na origem do lançamento do “Next Generation EU” esteve o surto pandémico e a decisão de fazer face solidariamente aos seus efeitos nefastos (necessariamente em função do modo como ele se repercutiu nas diferentes realidades nacionais e regionais europeias, disso mesmo dando conta o espírito e/ou a letra dos documentos iniciais e dos subsequentes regulamentos comunitários aplicáveis).

(ix)   Uma referência, ainda, à questão da reforma e capacitação da Administração Pública, carente de um enfoque urgentíssimo e sempre adiado no País e relativamente à qual seria nosso entendimento predominante o de não corrermos precipitadamente atrás de “mais do mesmo”, antes fazendo anteceder qualquer implementação de missões muito precisas (uma task-force?) junto de uma DG REFORM (Comissão Europeia) que possui na matéria algum track-record e um certo saber de experiência feito baseado em casos concretos de outros países da União.

(x)    Quanto ao modelo de governação, o benefício da dúvida com que o encaramos não nos inibe de apontar receios de alguma ineficácia (prática e substantiva) dele decorrente, seja porque mescla competências muito diversas e pouco compatíveis (a velha questão da Economia e das Finanças somada a um “pode alguém ser quem não é”... nessa “parceria” de coordenação a estabelecer entre GPEARI do MF e AD&C do MP), seja porque insiste numa comissão nacional de acompanhamento político-institucional e não eminentemente orientadora e monitorizadora, seja porque não se definem de forma precisa as funções nucleares da chamada ”Estrutura de Missão Recuperar Portugal”.

(xi)   Uma última nota de precaução para os riscos associados a um modelo de governação que também poderá falhar por via de mecânicas de funcionamento interno que importaria “lubrificar” à partida (da IGF ao TdC), tanto mais quanto já foi pela Comissão Europeia afirmado que a execução deste “Plano” terá consequências em sede de Finanças Públicas.

Aqui fica para registo de cidadania, porque quanto ao resto parece mais do que evidente que les jeux sont faits...

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