(Fotografia de Jérôme Sissini/Magnum para a New Yorker que abre o artigo abaixo citado de Massa Gessen)
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(Uma das maiores perplexidades que a Guerra da Ucrânia me tem despertado é a manifestação identitária que os Ucranianos na sua corajosa resistência e bravura têm revelado. Essa perplexidade é tanto mais saliente quanto mais reportarmos os nossos referenciais à errada perceção revelada por Putin e seu séquito quanto à pressuposta pertença da Ucrânia à realidade inventada de “um só povo”. Ainda há dias, quando discutia na Casa Comum da Universidade do Porto os problemas do turismo e da identidade das Cidades, neste caso do Porto, referia que o conceito de identidade de um povo ou de uma nação é das construções mais complexas que as ciências sociais alguma vez forjaram. Tanto mais complexa quanto hoje se compreende que a identidade é uma construção social, dinâmica por natureza, em que não atuam apenas fatores internos à sociedade, mas antes opera uma simbiose nem sempre fácil de seguir entre influências internas e externas.
Putin já nos habituou a construções fantasiosas da realidade sobre a qual coloca a pata do seu autoritarismo, como se necessitasse de uma auto-validação para justificar os atropelos que provoca de uma relação normal entre os povos.
Em julho de 2021, numa das suas intervenções públicas, Putin afirmou o seguinte:
“(…) Russos, Ucranianos e Bielorussos são todos descendentes da Antiga Rus, que foi o maior estado na Europa. Eslavos e outras tribos ao longo de um vasto território – desde Ladoga, Novgorod e Pskov até Kiev e Chernigov – estavam ligados por uma língua (que hoje designamos de Russo Antigo), relações económicas, o papel dos príncipes da dinastia Rurik e – depois do batismo da Rus, pela fé Ortodoxa. A escolha espiritual feita por São Vladimir, que foi também Príncipe de Novgorod e Grande Príncipe de Kiev, ainda determina em grande medida a nossa afinidade de hoje.
O trono de Kiev assumiu uma posição dominante na antiga Rus. Essa posição prevaleceu desde o século nono tardio. A Lenda dos Anos Passados capturou para a posteridade as palavras de Oleg o Profeta acerca de Kiev, “que seja a mãe de todas as cidades Russas”.
Mais tarde, tal como outros estados Europeus desse tempo, a antiga Rus enfrentou um declínio do seu papel central e a fragmentação. Ao mesmo tempo, quer a nobreza quer o povo comum perceberam a Rus como um território comum, a sua casa-mãe.”
Nesta alocução, a clareza de Putin quanto à ideia de “um só povo” parece-me indiscutível, cedendo embora à errada ideia de que a identidade é uma coisa exclusiva do passado. Como já o referi, a identidade é uma construção social em que os diferentes grupos sociais interpretam as suas raízes históricas, à medida que se confrontam com toda a série de influências do presente e do exterior.
Não vou discutir, como o faz Aaron Erlich no War on the Rocks, se esta referência histórica e pretensamente identitária invocada por Putin explica ou não a aparente surpresa e revezes associados com a resistência ucraniana, que ao contrário do esperado, não estendeu a passadeira vermelha ao líder desse tal “um só povo” e matou generais e destruiu uma grande parte do potencial bélico colocado ao serviço da invasão. Essa discussão é infernal pois nos levaria a ter de analisar todos os mecanismos enviesados de informação, para lá do recurso literal à história, que teriam sido responsáveis pela errada perceção de que os Ucranianos se sentiriam irmanados nos símbolos de pertença à velha Rus. Esse enviesamento de informação é inexplicável, tanto mais que o próprio Erlich documenta inúmeros estudos de opinião que mostravam que esse sentimento de pertença era nulo, com evidência anterior e posterior à revolução de 2014 e ocupação da Crimeia.
A resistência ucraniana é sinal de uma manifestação fortemente identitária de lealdade ao estado e à nação ucraniana, parecendo por isso que as questões da língua e da etnia da população não são fatores que comprometam essa lealdade revelada na e perante a força das armas.
Claro que a história conta e quer as invasões e ocupações nazi e soviética (com as atrocidades cometidas sobre judeus e outras minorias) da Segunda Guerra Mundial terão contribuído para esse sentimento de identificação com um território. Já agora relembro que a minha crónica sobre o Babi(yn) Yar de Anatoli Kuznetsov, com bastantes leitores diga-se, tem um desenvolvimento excelente no artigo de Masha Gessen na New Yorker de 18 de abril de 2022, designado de The Memorial, que se concentra nas diferentes operações urbanísticas que a ravina dessa tragédia foi objeto até à sua configuração atual.
Uma das explicações possíveis é a da influência confirmada pela literatura de que a guerra e a violência constituem processos com forte influência no refazer de identidades. A rejeição do ocupante (Crimeia em 2014) e do invasor sanguinolento geram processos complexos de rejeição que podem facilmente sobrepor-se a fatores identitários trazidos pela história comum.
Uma questão mais complexa para a qual não tenho nem evidência, nem reflexão acumulada, é a da pressuposta identificação com o ideário europeu que tem justificado o desesperado pedido de ajuda e de adesão à União Europa. Embora se perceba que a revolução de 2014 e a rejeição do representante fantoche-russo tenha despertado propensões ocidentais e de proximidade com os regimes políticos da democracia liberal, não tenho evidência suficiente para compreender que tensões identitárias terão sido desenvolvidas nesse processo que acabaria mais tarde por conduzir à chegada ao poder de Zelensky.
Mais complexa ainda é a relação existente entre a manifestação identitária de que falei e a presença na sociedade ucraniana de manifestações pontuais de extrema direita, em torno de cujo empolamento Putin construiu a bizarra tese da desnazificação da Ucrânia.
Mas neste caso, perante a heroica resistência dos Ucranianos, a manifestação identitária revelada no terreno pela e sob a força das armas sobrepõe-se a qualquer reflexão sociológica. Até porque quando comparamos as nossas identidades com as que são reveladas todos os dias perante o perigo da morte e da sobrevivência pura e simples a decência leva-nos a meter a viola no saco e reconhecer simplesmente que colocar a vida ao serviço de uma identificação com um território e com um Estado é coisa que nós, acomodados pelo progresso, começamos a entender como algo de anacrónico.
A perplexidade e a curiosidade intelectual podem permanecer, mas o respeito pela sua manifestação concreta é imenso.
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