segunda-feira, 9 de maio de 2022

DIA DA EUROPA

 


(Numa altura em que Putin e os seus aliados mais próximos mergulham na mais ousada revisão da história de que tínhamos conhecimento, martelando a ideia de que a vitória sobre o nazismo alemão na Segunda Guerra Mundial é uma proeza exclusivamente russa, como se apenas o mais indiferenciado soldado soviético devesse ser lembrado, é fundamental recordarmos a ocidente essa efeméride. Tanto mais que a construção da Europa é um produto dessa Guerra e da inteligência e visão de alguns, forjando um projeto que no seu entendimento melhor defenderia o mundo da repetição dos mesmos erros. Quando nos começávamos a interrogar sobre o que é que representaria de ameaça para a Europa e suas conquistas a perda de memória causada pelo progressivo desaparecimento dos que presenciaram (e ninguém melhor e mais profundamente do que Tony Judt o analisou), sofreram e combateram o terror nazi, eis que essa reflexão deixou de ter qualquer interesse, pois a ameaça está de novo aí, envolvendo irremediavelmente as gerações que perdiam a memória sobre os fundamentos da construção europeia. Assim, o comemorável Dia da Europa terá de o ser, equacionando este novo contexto e as ameaças que podem justificar os avanços que há tempos vínhamos diferindo, graças aos equilíbrios mais engenhosos.)

Uma ideia tão revolucionária e contexto-dependente como a da criação de uma Europa Unida teria obviamente que ter origem em gente de enorme visão. A força do argumento impôs-se pela sua audácia, mas também pela contraprova negativa que a Segunda Guerra Mundial com os seus horrores tinha provocado. Mas um projeto desta envergadura e complexidade, e devido à inevitável perda de influência dos interesses nacionais em detrimento da lógica da afirmação coletiva, não podia deixar de progredir em rigorosa correspondência com a evolução das opiniões públicas nacionais e do modo como as forças políticas foram elas próprias evoluindo.

Certamente que todos os de boa fé admitirão que se deram passos mais largos do que a própria perna. Não importa para muito, no entanto, discutir o contrafactual de tais decisões que provieram mais dos diretórios europeus do que da consulta e discussão com os Parlamentos nacionais. E não podemos também deixar de ponderar que o projeto europeu foi sendo construído com uma visão demasiado benigna e otimista do papel do mercado como força reequilibradora de desníveis de desenvolvimento entre os que alinham na aventura. Os efeitos positivos de alargamento de mercados que a integração europeia permitiu aos países menos desenvolvidos como Portugal beneficiar, passado o tempo de manifestação das economias de escala envolvidas, tem algum dia de se confrontar com aquilo que nós economistas designamos de vantagens comparativas dinâmicas. Ou seja, para um dado modelo de especialização instalado, a integração tende obviamente a gerar efeitos positivos, escalando oportunidades. Mas o que o estudo da divisão internacional do trabalho nos mostra no tempo longo das mudanças estruturais é que a especialização quando se processa entre países com nível de desenvolvimento e maturação tecnológica desiguais tende sempre a ocultar um potencial de dinamismo desigual. Regressando ao velho modelo ricardiano da especialização, vinho (português) versus manufaturas (inglesas), estão aí ancoradas vantagens comparativas dinâmicas desiguais, o menos desenvolvido tecnologicamente tende a auferir ganhos dinâmicos mais baixos. Claro que a divisão internacional do trabalho é algo de dinâmico e não petrificado no tempo e muitos países souberam sair desses estádios para subir na cadeia de valor da especialização, construindo pela política industrial em economia aberta (caso lapidar da Coreia do Sul) as suas próprias vantagens comparativas dinâmicas.

Esta é uma questão arrastada e recorrente na discussão do futuro português e da nossa posição na divisão internacional do trabalho. Já lá vão há muito tempo os benefícios mais ou menos imediatos do alargamento de mercados que a integração europeia nos proporcionou, aliás acompanhados por um vigoroso esforço de reequipamento da indústria transformadora portuguesa que os Fundos Estruturais trouxeram nos anos 80 e inícios de 90. Os desafios são agora outros. Dirão as autoridades europeias e sobretudo os diretórios mais influenciados pelos países do Norte que os Fundos Estruturais terão permitido que Portugal, em sucessivos períodos de programação, beneficiasse dessa oportunidade para evoluir na divisão internacional do trabalho. Em parte as autoridades comunitárias têm razão e há dias a Comissária Europeia para a Coesão, Elisa Ferreira, chamava a atenção para a armadilha dos países de rendimento intermédio como Portugal, que não é mais do que uma outra designação para descrever esses problemas de construção de vantagens comparativas dinâmicas no quadro regulamentar dos FEEI e da política de concorrência. Sempre defendi que a Comissão Europeia só tem razão parcial.

O ambiente de investimento potenciado pelos FEEI e pelos programas operacionais em que são aplicados não é, em meu entender, equivalente no quadro regulamentar da política de concorrência europeia a uma política industrial tal como foi praticada e ainda o é em economias fora do quadro regulamentar europeu. Todo esse quadro regulamentar foi concebido num contexto em que as autoridades comunitárias se assumiam como fervorosos adeptos da globalização e da sua regra principal: o princípio da eficiência dos mercados determinaria que nenhuma mercadoria pudesse ter a sua produção replicada num país que não conseguisse atingir o nível de qualidade-preço do competidor mais eficiente. Todos nos recordamos da maneira displicente como a Comissão Europeia tratou em seu tempo (e particularmente um dos seus Comissários) o desmantelamento aduaneiro têxtil que abriu caminho à ofensiva chinesa nessa matéria.

A revolução de contexto que temos observado em matéria de globalização, com a interrogação dos seus rumos determinada num cúmulo infernal de causas que começou com o incremento dos populismos económicos, as disrupções das cadeias de valor e dos transportes a nível mundial impostas pela pandemia e agora com as disrupções da guerra não tem ainda reflexos visíveis nos quadros regulamentares europeus. A Europa mais burocratizada reage mais lentamente do que a progressão dos desafios e, para além de tudo, os ventos que se formam do lado de lá do Atlântico devem-nos merecer cautela. As dificuldades de progressão política de Biden aconselham prudência. A tese de que o Ocidente está unido pode ruir a qualquer momento e o desenvolvimento desigual ainda instalado no interior da União penaliza qualquer esforço para um caminho autónomo.

Vamos proximamente viver períodos de grandes decisões, sejam elas importantes porque sejam tomadas, ou simplesmente porque os efeitos de o não serem pode também provocar efeitos fortemente penalizadores. Uma Europa com menos desenvolvimento desigual facilitaria opções para o tal federalismo pragmático que Draghi trouxe ao debate público nos últimos dias. O mundo está obviamente virado do avesso quando pragmáticos conservadores fazem o papel de revolucionários das ideias. De certo modo, os Fundadores também afinavam por este tom. Muito dificilmente os países mais pequenos poderão bloquear processos de agilização do processo de tomada de decisão nas diferentes instâncias europeias e sou dos que tendo a concordar que mais cedo do que tarde a formação de listas europeias ao Parlamento Europeu tem de ser uma realidade.

Claro que decisões desta envergadura não podem ser afastadas dos Parlamentos nacionais, apesar do incómodo político que podem provocar aos que colocam a discussão nesse plano. Mas talvez nunca como agora os desafios do contexto em que estamos mergulhados representem o caldo ideal para os cidadãos compreenderem que há momentos em que os interesses nacionais não são absolutos. Porque isto de cantar de galo europeu (não o francês de Macron) sem ter as condições para tal algum dia terá de correr mal.

Talvez nunca como hoje o dia da Europa tem razões para ser comemorado a pensar mais no futuro do que a construção europeia nos trouxe até agora.

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