(O discurso de Putin no Dia da Vitória de 9 de maio, em Moscovo, constitui um elemento entre outros, não o único, mesmo estando atento ao possível significado de algumas ausências entre as personalidades do regime presentes, para integrar a evolução dos acontecimentos. Outros elementos sucederam-se a um ritmo estonteante desde a cavalgada de Boris Johnson que viu na guerra a sua sobrevivência política à sub-reptícia mudança de objetivos com que americanos e britânicos estão a encarar a ajuda à Ucrânia, passando pelos desejos da Finlândia e da Suécia de aderir à NATO. Quer isto significar que estamos perante uma necessidade óbvia de interpretação dinâmica da guerra, tamanha é a diversidade de novos elementos que surgem a todo o momento no puzzle interpretativo que nos resta construir. Tenho a sensação que para os Ucranianos este alerta de que é necessário uma interpretação dinâmica da guerra, do seu alcance e objetivos, é conversa fiada, pois perante todos os cenários possíveis que as novas variáveis despertam há uma realidade crua e fria que lhes bate à porta todos os dias, a destruição do seu país…)
Creio que a capacidade analítica de Daniel Oliveira esteve ontem, no Eixo do Mal, certa e acutilante, quando referia que a sua principal angústia não era explicada pelo facto de não se vislumbrar ainda uma alternativa de saída para o fim da guerra e para a paz. A angústia está, pelo contrário, na perceção de que o rumo dos acontecimentos (os tais novos elementos dinâmicos que estão sempre a emergir) pode conduzir rapidamente ao fechamento de qualquer alternativa. E, de facto, se quisermos ser rigorosos, a interpretação dinâmica a que me referia no cabeçalho deste post está a colocar no ar o fechamento dessas alternativas. Creio ainda que Daniel Oliveira está cheio de razão quando discerniu que um cenário de prolongamento para lá do horizonte imediato coloca a Europa num risco elevadíssimo de estagnação e penalização económicas, pelo menos em relação aos EUA e a todo o continente asiático.
O discurso de Putin no dia 9 de maio pode abrir caminho a todas as especulações interpretativas possíveis, já que foi suficientemente curto para quebrar, simultaneamente, expectativas criadas e permitir várias opções tático e estratégias de continuação do conflito por parte do autocrata russo. A não referência ao seu projeto e visão imperial é obviamente tática. É algo que fica entre parêntesis, mas que não pode ser esquecido dada a veemência e clareza de intenções com que ele foi apresentado no passado recente. O discurso pode também ser interpretado como um “time out” para reorganizar forças e recursos, redefinir pontos de ataque e internalizar a informação que resulta da resistência e resposta das forças ucranianas. Pode também ser lido como a manifestação de que a conquista do Donbass constituiria o objetivo central, lendo este realinhamento de objetivos territoriais como uma correção de trajetória ditada pela incapacidade revelada de conquista de Kiev, o não totalmente concretizado assustar do ocidente da Ucrânia e vizinhos, sobretudo da Polónia e pela conquista não sustentada de Kahrkiv. Se do ponto de vista da criação de abertas de negociação o eventual foco no Donbass poderia abrir algumas oportunidades, uma visão fria e objetiva do pensamento da Ucrânia sobre este redirecionamento da invasão russa teria apenas o condão de melhor focar a resistência e o eventual contra-ataque ucraniano.
Mas o principal fator de incerteza dinâmica vem do ocidente (EUA e Reino Unido) já que, embora seja duro confessá-lo, a Europa anda à deriva no que realmente pretende com a ajuda à Ucrânia. Talvez num tom demasiado agreste, deva dizer que enquanto do lado da Europa predomina a retórica dos valores, do lado dos EUA e do Reino Unido temos “real politiK” da melhor e da mais agressiva. Não tenho informação suficiente sobre o que se passa no terreno para ajuizar se a narrativa da vitória real e possível da Ucrânia no conflito é suficiente realista. Mas o que foi claramente percetível é que a ajuda desses países à Ucrânia é agora comandada por uma vontade dissimulada de destruir Putin e o seu regime. O que muda radicalmente o horizonte temporal esperado do conflito, já que não são totalmente inteligíveis os caminhos para a desagregação do regime de Putin, sobretudo porque em matéria de alternativas a Putin essas estarão obviamente nos nacionalistas russos mais extremados. Ou seja substituir Putin por alguém mais compreensivo é uma pura ilusão, com a informação que temos hoje. Já se percebeu que não se trata de um regime de oligarcas, mas de uma autocracia pura e simples, daí o falhanço das sanções milionárias. E ainda não se compreendeu bem de que linhas mestras se alimenta essa autocracia, não sendo por isso possível identificar fontes de desagregação possível.
Os elementos de incerteza dinâmica colocados pela possível adesão da Finlândia e da Suécia são de outra natureza. Trata-se de decisões racionais impulsionadas por efeitos de outras decisões. A postura agressiva de Putin face aos seus vizinhos obviamente que os obriga a equacionar noutros termos a sua segurança. A possibilidade da NATO estar na fronteira contígua à Rússia é um fator de agravamento de instabilidade, mas é uma sequência racional da revelação da propensão de Putin para a agressão. Não é possível ainda antecipar as consequências sobre a própria NATO dessa concretização, mas a posição já revelada pela Turquia é suficientemente relevante para compreender o que pode acontecer.
Nesta incerteza dinâmica, a União Europeia corre o risco de se transformar numa barata tonta, incomodada pela luz dos acontecimentos. Ursula von der Leyen vai fazendo os possíveis e impossíveis, mas só em Macron se vislumbra algum sentido estratégico. A figura do Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, é a manifestação mais simbólica da barata tonta em que a União corre o risco de se transformar, perante a guinada de objetivos operada pelo Reino Unido e pelos EUA. Claro que tudo tem se ser reescrito se os Democratas soçobrarem a meio e no fim do seu caminho.
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