(Pegasus de mi Pueblo)
(Nunca me teria atrevido a escrever sobre esta matéria não fora esta imagem fortuita, e deliciosa pelo chiste que encerra, que apanhei no Twitter, @txapucabor e que tinha o título de “Pegasus de mi Pueblo”. Ainda estou para entender por que raio terá sido dado o nome mitológico grego de um cavalo alado que simboliza segundo algumas fontes a imortalidade ao software israelita, criado pelo NSO GROUP de Israel, utilizado para a alta espionagem de figuras políticas de relevo. Desta vez, o Pegasus manifestou a sua presença pelas bandas de Espanha, perturbando ainda mais uma política interna cada vez mais atribulada, embora se vá formando a ideia, paulatina mas sustentadamente, de que a direita espanhola, liderada pelo galego Feijoo, cria condições para a alternativa de poder.
Pelo que se tem percebido a política está cada vez menos encriptada, no sentido de que está desprotegida e vulnerável à intrusão de software de espionagem, que malevolamente a torna transparente não para os eleitores e população em geral mas para as forças ocultas que beneficiam do potencial de supervisão oculta que o Pegasus proporciona.
Primeiro, foram os líderes nacionalistas catalães que estiveram sob a mira desses olhares furtivos, trazendo à política espanhola mais um fator de crispação e perturbação, numa série de eventos disruptivos que se têm sucedido a um ritmo estonteante. A série e a intensidade são tão intensos que apetece perguntar com que forças Sánchez e o PSOE têm conseguido aguentar o barco. O meu entendimento é simples. O governo espanhol tem-se aguentado graças a um modelo de funcionamento e de alianças cada vez mais casuístico, numa geometria variável infernal que vai retirando qualquer legibilidade à ação governativa. Ainda sem uma explicação oficial e única sobre o que terá levado o serviço de inteligência espanhol a definir os líderes catalães como “target” da “supervisão”, alguns jornais espanhóis, creio que municiados com informação proveniente do próprio Governo, avançaram com possíveis cumplicidades entre o independentismo catalão e os serviços de pirataria informática russos, que sabemos existirem e que estiveram ativos em inúmeros processos, desde a vitória de Trump (mais propriamente a derrota de Hillary Clinton) ao BREXIT, passando pela crise catalã. Até agora, a explicação dada pelo Governo espanhol, diz o Público, refere que não foi utilizado o spyware Pegasus nesse processo, embora nada tenha sido ainda confirmado sobre os métodos utilizados, questão que foi remetida para o inquérito a realizar e para os serviços de inteligência.
Segundo, e quase em sintonia temporal com o Catalangate, surge a notícia de membros do Governo de Sánchez, incluindo ele próprio, terem os seus telemóveis infetados com o spyware do cavalo alado. Não faço a ideia se esta revelação emerge ou não como fator de distração da algazarra provocada pelos líderes catalães e pela posição incómoda em que o Sánchez ficou com esse processo. Pode ser que sim. Rapidamente, a imprensa espanhola apontou o dedo a Marrocos, tornando ainda mais complexa a questão. Como sabemos, a guinada do governo espanhol em relação ao problema do Sara ocidental foi dos aspetos mais enigmáticos da política externa espanhola dos últimos tempos. O líder da Frente Polissário foi tratado em Espanha e isso provocou uma violenta reação do Governo de Marrocos, com interrupção de representações diplomáticas e crescente crispação nas fronteiras. Ora, mais recentemente, os dois governos reaproximaram-se de novo, o que deu a entender que Espanha abandonara os interesses do separatismo marroquino do sara ocidental.
Imagina-se a caldeirada em que a simbiose política interna-política externa em Espanha está mergulhada.
A questão mais vasta que está aqui diluída suscita uma grande preocupação sobre os princípios de defesa da democracia. Trata-se de saber como organizar as relações entre os serviços de inteligência e os valores da democracia. Estes serviços e os seus profissionais não podem deixar de ser protegidos nas suas funções. Mas para que o cidadão possa confiar nessas funções, a regulação do exercício das funções de inteligência tem de ser rigorosa, clarificando em que condições a intervenção nas comunicações de cada um pode ser realizada, identificando também com rigor quem as deve autorizar. Obviamente que seria do interesse nacional (espanhol) perceber em que condições a influência russa estaria a chegar ao independentismo catalão, mas a nebulosidade em que essa monitorização terá sido concretizada adensa as preocupações sobre a difícil coexistência entre tais serviços e os valores democráticos inalienáveis da proteção da privacidade.
E obviamente a questão complica-se pois o que rodeia a utilização do spyware do cavalo alado significa que as preocupações não se limitam ao espaço da política interna, para se cruzarem, abertamente, com a espionagem internacional. Nos tempos que correm de “uma nova crispação internacional”, seja ela fria ou quente, a questão assume proporções que julgávamos anacrónicas. Para mal dos nossos problemas, já não teremos a subtileza de um John Le Carré a ajudar-nos a recriar essa complexidade.
O ambiente local do Pegasus de mi Pueblo que marca a imagem do dia de hoje e que lhe dá uma graça tão especial terá sido responsável pela fuga de pequenas localidades concretizada por tanta gente, não só para procurar melhores empregos, mas também para escapar à pressão dos rumores sociais que aquelas prazenteiras conversas, às quais deveríamos juntar as conversas dos homens nas tabernas, exerciam na liberdade de cada um. O que não esperaríamos é que esse “gossip” prazenteiro e medicamento para a solidão da baixa densidade desse lugar a processos mais sofisticados de invasão da privacidade, atingindo os próprios primeiro-Ministros.
Já agora rezam as crónicas que o governo português não terá sido envolvido pelo cavalo alado. Ninguém nos atribui importância. A não ser que sejamos surpreendidos por qualquer revelação de contágio ibérico.
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