(Com o sofrimento e resistência estoica dos Ucranianos como pano de fundo de todas as ideias, a guerra da Ucrânia suscitada por uma invasão tirânica do autocrata Putin e companhia próxima tem determinado, por si só, para a leitura do mundo de hoje três grupos de efeitos – acelerações de processos para os quais a vontade política escasseava, correções de ideias feitas que se revelaram erradas e novas pistas para o futuro, alimentando o nosso contínuo de interrogações. A importância destas tipologias de efeitos é similar, diferentes mas igualmente importantes. O post de hoje ocupa-se desta trilogia.
Comecemos pela aceleração de processos.
Tenho defendido que a transição energética é daqueles rosários mal resolvidos em que o capitalismo de hoje está mergulhado para mal das condições de vida de quem é obrigado a viver sem as utopias de outrora. A mais do que confirmada emergência climática não se tem revelado para os políticos que devem tomar decisões e para os cidadãos que têm de mudar consequentemente hábitos de vida, de consumo e de alimentação estímulo suficiente para criar condições para uma verdadeira transição. Sobretudo o que mais me espanta e irrita neste processo é a ausência de opções claras quanto à combinação necessária de fontes de energia para concretizar uma transição eficaz e já não estou a considerar o vazio das opções fiscais que devem ser assumidas para o tornar possível.
Aparentemente, a diabolização dos combustíveis fósseis foi conseguida, mas quando se discute o possível embargo do petróleo russo e se percebe a magnitude das receitas financiadoras da guerra que a sua exportação tem permitido aos russos rapidamente se conclui que essa diabolização é ainda mais aparente do que real. E há ainda a importância do gás natural, sobre o qual a discussão do possível embargo das importações com origem na Rússia permite também compreender a sua real importância num mix de fontes de energia que a transição ambicionada terá de acomodar. Ora, numa prova de força e de demonstração que o poder de iniciativa está do lado de Putin, o autoembargo russo de fornecimento de gás à Polónia e à Bulgária teve o condão de acelerar todo o processo de decisões europeias quanto a esta matéria, incluindo uma perplexa Alemanha que vê a cada dia desmoronar-se o princípio de opções consideradas inabaláveis. Ainda hoje, o economista Ricardo Cabral publica no Público uma crónica extremamente pedagógica para explicar a decisão russa de exigir os pagamentos de petróleo e gás em rublos, medida que pareceu suicidária para os interesses russos e que não obstante se tem revelado eficaz como medida de curto prazo para prolongar o financiamento da guerra através dessas exportações.
É uma tragédia não ser a emergência climática a assumir o papel de detonador e acelerador das grandes e necessárias decisões. Pelo menos na União Europeia, acaba por ser o autocrata Putin a acelerar esse processo e neste novo contexto muito dificilmente a transição energética poderá ignorar a questão dos mixes de fontes de energia que é necessário assegurar ao longo dessa transição. E talvez matérias como a do armazenamento de fontes de energia venham a adquirir a importância que tem sido ocultada, senão mesmo artificialmente desvalorizada.
Este é talvez o caso mais evidente de aceleração de processos que a guerra da Ucrânia irá determinar. Mas tenho para mim que também dificilmente o reordenamento do processo decisório da União Europeia escapará mais tarde ou mais cedo a uma profunda revisão, sobretudo impulsionada pelas questões da defesa e da segurança europeias.
Mas o prolongamento não esperado da invasão e da guerra tem determinado uma série de correções de ideias feitas que, uma após outra, tem caído face à nova evidência revelada.
Talvez a mais significativa seja a correção sobre o modelo político russo na era Putin. A ideia de que o modelo russo de Putin era uma oligarquia plutocrática caiu por terra com o inêxito das pesadas sanções dirigidas aos oligarcas russos. Não é de uma oligarquia que estaremos a falar mas sim de uma autocracia ditatorial rigorosamente vigiada com poder e repressão ferozes e uma gigantesca encenação comunicacional. A expressão que Branko Milanovic utiliza para descrever o falhanço das sanções é lapidar: “A influência dos oligarcas era, como sabemos, nula. Ironicamente, perderam os seus ativos porque não eram poderosos”. O economista sérvio tem dedicado alguma investigação a esta matéria e distingue claramente entre o poder político dos oligarcas que inicialmente tiveram uma influência de manipulação política e os oligarcas atuais, visados pelas sanções, cuja influência no regime de Putin está hoje largamente interrogada, senão mesmo anulada. Por isso, nos próximos tempos será importante acompanhar quais vão ser os próximos destinos das exportações de capital realizadas pelos oligarcas russos agora sob o fogo das sanções. E julgo que não me enganarei que irá surgir toda uma série de possíveis candidatos, dispostos a ocupar o lugar das grandes praças ocidentais.
Entre as correções determinadas pelo prolongamento da guerra, está também a confirmação do modelo de expansão russo ambicionado por Putin. Já me ocupei de tal correção noutros posts. Trata-se simplesmente da tentativa de reconstituição de uma mancha imperial que bebe a sua inspiração na época dos czares e que rejeita a cedência dos bolcheviques a um modelo de maior descentralização das Repúblicas soviéticas.
Finalmente, há novas pistas para o futuro.
Para hoje, deixo-vos com dois exemplos.
A primeira pista aponta para a necessidade de maior compreensão e seguimento futuro dos nexos existentes entre o financiamento russo e as forças políticas que a ocidente têm mantido uma posição de proximidade relativamente a Putin, não integralmente quebrada com o posicionamento face à invasão da Ucrânia. São conhecidos os volumosos empréstimos bancários concedidos, por exemplo, por grandes bancos russos ao partido do Rassemblement de Marine Le Pen. Dadas as características do regime de Putin, sempre poderei dizer que não acredito em bruxas, mas que las hay, las hay. Estou em crer que no Brexit existiram influências dessa natureza. E certamente que uma investigação jornalística mais profunda poderá revelar novas surpresas …
Finalmente, haverá interesse em seguir a evolução da economia russa, sobretudo porque vai ser um laboratório de experimentação de saídas e soluções que julgávamos ter desaparecido do radar das opções económicas estratégicas. Neste caso, opções forçadas na sequência da invasão russa que não poderia ficar impune. É também o economista sérvio Branko Milanovic que dá o mote. Diz ele que a economia russa irá praticar nos próximos tempos uma substituição de importações tecnologicamente regressiva. A razão é simples. Toda a modernização da economia russa estava dependente de moderna tecnologia estrangeira que comprava com as receitas da sua economia extrativa. Ora, no futuro próximo essa possibilidade está coartada. A Rússia vai ter de recorrer a tecnologia de segunda ou terceira escolha, já que a de primeira escolha estar-lhe-á vedada. É a isto que se chama uma substituição de importações regressiva, pelo menos tecnologicamente falando. E contradição suprema, uma população muito qualificada vai ter de trabalhar com tecnologias que não estão ao nível da sua formação. Também por aqui irá passar o êxodo de talentos. Para alguém como eu que estudou de perto os modelos de substituição de importações latino-americanos mais intervencionistas e os asiáticos mais leves e claramente orientados para a substituição de exportações, parece um contrassenso e algo anacrónico falar de substituição de importações tecnologicamente regressivas. Mas é a isso que a ambição desmedida do autocrata vai conduzir a economia russa.
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