quarta-feira, 4 de maio de 2022

A HILLBILY ELEGY OU O FANTASMA DE TRUMP

 

 



(Quando li, ainda não havia a tradução portuguesa, a Hillbily Elegy de J.D. Vance, publicada em 2016 e aqui comentada em novembro de 2016, tive uma estranha intuição de que aquela abordagem do declínio inexorável de uma América mítica iria provocar estilhaços sérios na política dos EUA. Não me enganei. Não só grande parte, a bondosa, do Trumpismo remetia para aqueles valores de ressentimento, como o autor J.D. Vance haveria de iniciar uma carreira política. Ora, em linha com essa minha intuição, J.D. Vance acaba de ganhar as primárias dos Republicanos no Ohio, vencendo com cerca de 30%, num conjunto de quatro candidatos. A imprensa americana, com o New York Times e o Washington Post à cabeça, não hesitam em considerar que tal vitória teria sido impossível sem o apoio de Trump. Por isso, a Hillbily Elegy veicula uma espécie de fantasma de Trump que, para mal dos nossos problemas e inquietações, poderá transformar-se numa presença física real, de regresso à administração de todos os males.

A Hillbily Elegy, mais o livro do que o filme, é daquelas peças a que não se fica indiferente e que devemos ler para tentar compreender pelo menos uma das dimensões do ressentimento que atravessa as economias ocidentais. Não para entender, por exemplo, o ressentimento francês, mas essencialmente para compreender a frustração dos deserdados pela globalização. Claro que o populismo que cavalga esta frustração não pode ser mecanicamente explicado por este declínio e ressentimento. É de uma manipulação que se trata. Mas de uma manipulação perpetrada sobre pessoas concretas e, essas sim, para serem compreendidas, é necessário entender as razões que precipitaram essas vidas de declínio.

Como conta o New York Times, a entrada de Vance foi prejudicada inicialmente pelos comentários negativos que o escritor proferira no passado sobre Trump. Mas com um pedido de desculpas e com o apoio explícito do ex-Presidente, a subida nas sondagens foi relativamente meteórica e determinou a vitória nas primárias. O que é interpretado pelo jornal como um sinal da persistente influência de Trump no Partido Republicano, uma espécie de fantasma interveniente, que se prepara para recuperar a sua imagem física.

A recente evolução de Vance para um conspiracionismo de direita mais retrógrada que não hesita em associar o nome de Joe Biden à difusão de drogas ilegais no Ohio, mostra como a condescendência de liberais como nós para com o declínio e marginalização dos deserdados da globalização é confrontada com a mais completa desfaçatez de quem se limita a manipular essa gente e o seu sofrimento.

O possível regresso de Trump às lides irá cavalgar essas tendências.

Avizinham-se de novo grandes batalhas.

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