sábado, 9 de julho de 2022

EVIDÊNCIAS E NARRATIVAS DE GUERRA E NÃO SÓ …

(As nossas impressões sobre a guerra da Ucrânia têm estado reféns do modo como o chamado Ocidente, particularmente os EUA, países aliados e a União Europeia construíram a sua própria narrativa sobre primeiro a invasão russa e depois os desenvolvimentos no teatro das operações. Por mais importante que seja a defesa do modelo social e político que esse Ocidente representa neste conflito, seria bom que não esquecêssemos que não somos o centro do mundo e que há um conjunto gigantesco de países, designadamente as economias emergentes de grande dimensão, China, Índia, Brasil, Turquia que já há muito perderam complexos de inferioridade na economia global e que estão longe de afinar pelo mesmo diapasão que o Ocidente tem imprimido ao conflito. Essa visão mais abrangente da economia mundial é relevante sobretudo para a União Europeia, acaso esta pretenda fugir ao futuro de irrelevância que pode marcar a sua presença no mundo. Outras evidências, designadamente dos efeitos mais globais da pandemia, ganham também outro significado e expressão se considerarmos que não somos o centro do mundo e se pensarmos a economia mundial como um todo, não ignorando os mais pobres.)

A narrativa que vem sendo construída sobre a evolução do conflito na Ucrânia continua a gerar perplexidade em quem tenha dois dedos de testa e que teime em manter algum espírito crítico sobre tais narrativas, o que não pode ser confundido com qualquer relativização da agressão russa ou tentativa de branqueamento ou desculpabilização da ameaça que a invasão russa representou.

Nos últimos dias, perante os avanços consolidados das tropas russas no leste da Ucrânia e perante as sucessivas evidências de selvajaria bélica russa contrárias a qualquer moral de guerra, a narrativa instalada foi a de que finalmente o armamento americano e europeu está finalmente a chegar e que isso vai fazer a diferença, invertendo a relação de forças. Entretanto, o inverno está aí à esquina e mesmo sobre esse inverno tenho identificado diferentes narrativas. Assim, por exemplo, há quem diga que o inverno profundo colocará as forças russas em dificuldades de progressão no tipo de solo que caracteriza a principal parte do território ucraniano. Mas há quem contraponha que, para uma população debilitada e encurralada como é a população Ucraniana em muitas partes do seu território, um inverno de operações poderá ser trágico para muitos dos Ucranianos que tudo indica estarem a regressar em massa às suas terras. Mais ainda, há quem refira que o inverno será favorável à manobra russa de utilizar os fornecimentos de gás à Europa como arma de guerra, colocando as opiniões públicas europeias em stresse de agravamento de condições de vida, testando por essa via a resistência e adesão das sociedades civis europeias às posições defendidas pelos seus Governos.

Mas tudo indica que, mesmo antes da ameaça inverno ser consumada, o principal ponto de interrogação residirá apenas no grau de consolidação de ocupação do Donbass que as forças russas conseguirão impor em território ucraniano. Parece indiscutível que essa ocupação representará um sério revés a qualquer tentativa de envolver o governo ucraniano em negociações que visem suspender o conflito.

A consideração do conflito à luz do panorama vigente na economia mundial, incluindo as economias emergentes de maior dimensão, é fundamental para se compreender a verdadeira dimensão do tão proclamado isolamento da Rússia. Se a real dimensão dos efeitos internos das sanções ocidentais e do próprio esforço de guerra na Rússia pode ser sempre distorcida pelo regime de Putin, já a questão do isolamento pode ser compreendida sem grandes distorções, dada a posição de alguma cumplicidade com que a posição russa está a ser entendida nessas economias.

Essa leitura mais abrangente da economia mundial, sobretudo se nela incluirmos não apenas os emergentes mais poderosos mas também os países mais pobres, ser-nos-á útil também para compreender a real dimensão dos efeitos devastadores que a pandemia e a gestão dos confinamentos que foi necessário concretizar provocou em países e em grupos sociais mais desfavorecidos.

O The Economist desta semana chama a atenção (link aqui) para as consequências devastadoras em matéria de literacia e trajetórias de aprendizagem que os confinamentos e suspensão de aulas determinaram. Em Portugal, valha a verdade, foi a economista Susana Peralta que se destacou na denúncia desse tema e devo reconhecer que talvez tenha estado entre os que valorizaram excessivamente a capacidade das escolas, alunos e famílias para ultrapassar os desafios da interrupção das aulas presenciais. Fi-lo porque fui influenciado por casos concretos de adaptação inventiva e de grande profissionalismo de alguns professores, mas devo reconhecer que muito provavelmente confundi árvores concretas com florestas.

Por mais dúvidas que coloquemos a estimativas desta natureza, o artigo do Economist é aterrador:

O Banco Mundial afirma que a percentagem de crianças com dez anos nos países de médio e baixo rendimento que não são capazes de ler e compreender uma simples história aumentou de 57% em 2019 para 70% presentemente. Se não possuírem essas competências básicas, enfrentarão desafios gigantescos para alcançar um nível de vida decente. O Banco estima que cerca de 21 milhões de milhões de dólares serão retirados dos seus rendimentos aos longo das suas vidas – algo de equivalente a cerca de 20% do produto interno bruto mundial de hoje.”

De facto, não somos o centro do mundo. E nessa base talvez ganhássemos em pensar solidariamente e mais global.

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