(Tenho saudades dos Ficheiros Secretos e da dupla Gillian Anderson e David Duchovny, mas também da figura sinistra desempenhada por William B. Davis. Mas nos tempos mais recentes uma onda imensa de outros ficheiros secretos tem nos sido proporcionada por fugas internas de informação com inúmeras origens, mostrando que navegamos num mundo oculto e subterrâneo, minando as instituições pilar da democracia. A revelação pelo Guardian e consórcio internacional de jornalistas dos ficheiros UBER transporta-nos para mais uma dimensão do oculto na organização dos mercados da mobilidade urbana, revelando uma vez mais que à sedução da flexibilidade e da acessibilidade digital se contrapõem uma vez mais processos pouco claros de lobbying, tão catita que está Macron na fotografia, e de relações de trabalho que não podemos ignorar. Há limites para a flexibilidade, apetece-me escrever.)
Toda a gente se recorda da imagem de novidade e flexibilidade com que os novos serviços de mobilidade urbana (UBER e companhia) foram recebidos pela população com maior procura diária ou ocasional de mobilidade urbana. Para essa ampla recetividade muito contribuiu não só a novidade da oferta e a sua adaptação ao mundo digital, mas também o tradicionalismo da alternativa do táxi mais tradicional, então ainda pouco pressionado para a inovação, para não falar do tom demasiado “Chega” de uma grande parte dos profissionais, alguns dos quais primando pelo reacionarismo passadista mais descontrolado.
Por essa altura, lembro-me de ter lido algumas peças sobre a reação violenta que a Alcaldesa de Barcelona, a radical Ada Colau, moveu à UBER, na linha um pouco similar à que desenvolvera contra os grandes grupos de turismo mundializado que pontificavam no mundo predador do turismo urbano. Confesso que na altura não dei a devida importância à batalha de Colau, talvez a tenha interpretado como mais uma manifestação do seu radicalismo. Mas considerei essa posição como um alerta de algo que me parecia inevitável acontecer. O mundo da flexibilidade da oferta, qualquer que seja o seu âmbito, terá sempre algum dia que colidir com as questões das relações de trabalho e neste âmbito sou fiel aos meus princípios da flexi-segurança, algo que gostaria de ver melhor operacionalizado pelo socialismo democrático, não com a pretensão de sermos todos escandinavos, que nunca o seremos, mas com a preocupação de adaptar a flexibilidade do mercado de trabalho ao contexto social e político de cada país.
Os ficheiros UBER agora divulgados pelo Guardian e jornais associados são uma peça fundamental para compreender a estratégia de fixação e extensão de atividade de uma multinacional que por detrás do “glamour” da flexibilidade digital usa os métodos mais antigos do mundo, como o lobbying mais insidioso, violência, intimidação e sei lá o que mais. Nestas coisas, nada melhor do que uma radical como Colau para colocar os pontos nos iii:
“São tubarões especuladores que apenas se
disfarçaram de inovadores e de pequenos autónomos quando na realidade são uns
chouriços. Depois do que lemos e ouvimos já não sei como descrevê-los. (…) São grandes
plataforma digitais que fogem aos impostos, não cumprem regras e geram concorrência
desleal. Exploram muitas vezes falsos trabalhadores independentes que ganham muito
pouco enquanto eles ganham milhões. (…) São depredadores, saturam o mercado,
reinventam preços para os repercutir sobre os taxistas e se, tivessem conseguido
saturar o mercado, não teriam hesitado em subir os preços.” (link aqui).
É a Ada que fala, não eu.
O que me interessa neste tópico, ou como agora se diz, o meu ponto é, é a discussão se será mesmo inevitável contrapor a um imobilismo regulador como aquele que predominava nos chamados táxis, com as Antral deste mundo a pontificar, soluções totalmente desreguladas, numa perigosa associação de empresas globais com relações de trabalho da mais pura selvajaria e salve-se quem puder.
Compreendo até que a desconstrução do imobilismo possa episodicamente nos conduzir a tendências dessa natureza, mas rapidamente um equilíbrio reformista tem de ser encontrado e a “minha” flexi-segurança não pode ser remetida para as propostas para um futuro de gaveta. É que por detrás da flexibilidade e autonomia das relações de trabalho estão hoje nuvens negras que derivam pura e simplesmente da concentração empresarial e de uma coisa que estudávamos pouco, os monopsónios da procura. Hoje não acordei radical, mas acho que a Ada Colau tem razão, os pequenos autónomos são uma cortina que oculta relações profundamente desiguais.
No contraponto disto e embora por vezes os (aos sindicatos) acusemos de rigidez exasperante e de não proteção dos desempregados, a descida dos níveis de sindicalização das sociedades mais avançadas é aterradora. Não nos admiremos depois que a evolução do salário real esteja profundamente desfasada da evolução da produtividade, por mais agónica que este tenha sido.
Bom dia a todos e protejam-se desta canícula sufocante.
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