(Impressionados pelo regresso das imagens trágicas dos incêndios e ainda sob o efeito devastador da guerra da Ucrânia, para já não falar na degradação das condições de vida quotidianas, as imagens televisivas que nos chegaram do Sri Lanka não nos mereceram a atenção que mereciam. O poder simbólico dessas imagens é poderoso. Ele mostra-nos a insustentável leveza do poder, sobretudo quando não é acompanhado de fortes sistemas repressivos, como parece, aliás, ter sido o caso. Mas os acontecimentos do Sri Lanka mostram-nos também o que pode acontecer em múltiplos países da economia mundial, sobretudo no conjunto daqueles países dos quais só damos conta quando algo de medonho ou trágico aí acontece, na sequência das inúmeras disrupções que, primeiro a pandemia e depois a guerra da Ucrânia estão a provocar em termos de condições de vida de população tão desprotegidas.)
As imagens a que me refiro são fáceis de explicar.
A continuada degradação das condições de vida da população mais desprotegida gerada pelos efeitos das disrupções atrás mencionadas e o descontentamento popular acicatado por alguma decisão política mal-amanhada (medidas de contenção de consumo de combustíveis para responder à escassez absoluta de reservas de divisas estrangeiras) determinaram a invasão do palácio presidencial, exteriores e interiores. O poder caíra na rua. Percebeu-se que a repressão foi ténue, sinal de alguma conivência com os descontentes.
Mas a imagem que mais marcou e seduziu a minha atenção foi a da piscina do Palácio Presidencial ocupada pelos manifestantes, altamente simbólica.
Confrontando as imagens desta invasão no Sri Lanka com as do motim que determinou o assalto ao Capitólio nos EUA, a comparação é em si também sugestiva e simbólica. À raiva e violência agressiva dos invasores do Capitólio, em torno da qual se trava hoje nos EUA uma batalha judicial sobre o envolvimento de Trump no processo, contrapõe-se o descontentamento relativamente pacífico na invasão no Sri Lanka, talvez convencidos da justeza do ato e da absoluta necessidade de vincar a necessidade de substituição do poder.
Estas imagens são, para mim, simbólicas de algo mais transcendente a que não temos dado a devida importância. Mergulhados nas preocupações do nosso quotidiano não compreendemos que outros países vivem as disrupções que tanto nos preocupam e atormentam com muito maior penosidade. Somos assim capazes de nos envolver na defesa (até quanto tempo?) dos valores ameaçados pela invasão da Ucrânia, mas ficamos indiferentes a acontecimentos como a morte de inocentes em Melilla ou com a degradação das condições de vida de países mais distantes (como se os valores fossem comestíveis e enganassem a fome e o desespero).
A fase da economia do desenvolvimento e de outros âmbitos disciplinares sobre o desenvolvimento com que mais me identifico é aquela em que passou a existir fertilização cruzada entre as situações empíricas vividas no campo mais desenvolvido e no espaço do subdesenvolvimento e dos constrangimentos ao desenvolvimento. Ultrapassada a fase do etnocentrismo ocidental em que moldávamos a perceção das sociedades não ocidentais à luz dos valores ocidentais colocados no centro do mundo e superado também o período da macro e suprema especificidade dos países do subdesenvolvimento, percebemos finalmente que diferentes constrangimentos ao desenvolvimento, quando devidamente contextualizados, podem ser compreendidos com quadros teóricos e conceptuais comuns.
O mundo tornou-se também global pela globalização da imagem.
Os acontecimentos do Sri Lanka e do Capitólio USA tornaram-se património mundial de conhecimento generalizado. As imagens de queda do poder sem repressão à vista são tão importantes como aquelas que evidenciam a presença da repressão como a única forma de controlar a insustentável leveza do poder.
Foi nesse simbolismo que pensei quando os descontentes do Sri Lanka decidiram mergulhar na piscina do Palácio Presidencial.
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