terça-feira, 5 de julho de 2022

OS ALGORITMOS SÃO CONSERVADORES?

 


(O filósofo basco Daniel Innerarity é, sem dúvida, um dos pensadores contemporâneos mais estimulantes. Que não é um pensador talhado para compreender o status quo e as suas múltiplas manifestações já o sabíamos. Innerarity é o rumo certo para compreendermos melhor as grandes disrupções do nosso tempo. É consequente naquilo que ensina e ensinar sobre a disrupção equivale a fugir da zona de conforto em que grande parte dos intelectuais europeus se deixou prender. As suas atividades no Instituto Europeu de Florença levaram-no a criar uma cátedra ex-novo dedicada ao tema da Inteligência Artificial e Democracia. Foi nesse contexto que o El País o entrevistou. A entrevista é, em si própria, um documento de reflexão aprofundada sobre o tema acessível ao leitor comum e por isso lhe dedico o post de hoje.)

Cito, para começar, uma das suas respostas ao jornal espanhol, que me parece esclarecedora de uma outra abordagem sobre as relações entre a transformação digital (perspetivada pela inteligência artificial) e a democracia:

O ponto de inflexão acontece a partir do momento em que nós humanos desenhamos máquinas que têm vida própria, que não são meramente instrumentais. Quando produzimos inteligência artificial entramos num terreno bastante desconhecido. A divisão do mundo que tínhamos concretizado, segundo a qual nós humanos somos sujeitos com direitos e obrigações e concebemos uma tecnologia meramente passiva, que está submetida ao nosso controlo, é uma ideia que já não funciona. Há uma rotura. Comparo-a com o momento em que Darwin acaba com a ideia do Deus desenhador da criação: obrigou-nos a pensar de uma maneira diferente. E creio que quando se fala de controlar a tecnologia estamos, nesse sentido, numa atitude pré-darwiniana. Evidentemente, os algoritmos, as máquinas, os robôs, a inteligência artificial devem ter um desenho humano, temos de debater essa questão. Mas a ideia de controlo, como a que temos tido a propósito para as tecnologias triviais, parece-me completamente inadequada. O que temos de fazer é estabelecer um diálogo no qual humanos e máquinas negociemos cenários aceitáveis, pensando na igualdade, no impacto sobre o ambiente, nos valores democráticos. A ideia de controlar não vai funcionar quando falamos de máquinas que aprendem.”

A abordagem de Innerarity é em si muito disruptiva, já que a negociação (de cenários aceitáveis) com as máquinas não é nem intuitiva, nem aparentemente compatível com a ideia por nós assumida de que acreditamos nas máquinas e nos seus automatismos para reduzir o enviesamento das nossas posições e possíveis erros e assim ganhar uma maior objetividade. O filósofo basco cita o exemplo das novas tecnologias automóveis por via das quais conduzimos automóveis sobre os quais temos cada vez menos controlo, embora sejam mais seguros (alertas quando adormecemos e até irritantes sensores que nos avisam se bebemos demasiado para poder corrigir). E nunca devemos esquecer que “por detrás de processos aparentemente automatizados há pessoas intervindo sem que o saibamos”.

Mas a parte mais sombria do universo dos algoritmos é que eles são marcadamente conservadores. Afinal, eles desenham o nosso comportamento futuro em função do nosso comportamento no passado, já que tendemos a ser repetitivos e sobretudo muito conservadores. Os algoritmos exploram maquiavelicamente esse conservadorismo.

Encarados nesta perspetiva, os algoritmos, cunhados como uma manifestação suprema de inovação, são o seu oposto, pois não contemplam a dimensão da indeterminação e da novidade que são intrínsecas: “Nós os humanos somos seres imprevisíveis: uma boa parte da nossa liberdade deve-se a isso e as máquinas deveriam refletir bem sobre isso”.

Nota final:

Este fim de semana, ainda antes de ler esta entrevista de Daniel Innerarity, assisti a duas partidas de ténis que são, em si próprias, autênticos manuais de aprendizagem sobre comportamentos táticos e estratégicos com raquetes, bolas, uma rede e um terreno bem delimitado. A partida entre Daniel Tsitsipas e Nick Kyrgios foi um prodígio de irreverência, em que a qualidade suprema do ténis praticado e o risco dos dois contendores chegarem a vias de facto coexistiram lado a lado, perante a paciência do árbitro e juízes de linha para aturar as diatribes de Kyrgios que é tão importante como a destreza técnica do prevaricador. Ponto alto dessas diatribes, que destroçou Tsitsipas, foi o serviço por baixo realizado a certo momento por Kyrgios (recordo-me da estupefação de Ivan Lendl quando um jovem tenista asiático, do qual não me recordo o nome, serviu também por baixo e Lendl fez o gesto de que ele era maluco). Pelo contrário, a partida entre Simmer e Alcaráz foi um monumento de fair-play, com uma intensidade e variedade de golpes do outro mundo, anunciando que está aí uma nova geração que joga nos picos.

Se um algoritmo estivesse a ser concebido a partir do material das duas partidas para aprendizagem futura, qual seria aquela que influenciaria mais a sua construção?

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