(Prosseguindo neste propósito de seguir de perto a política espanhola e nela encontrar elementos de interpretação que nos ajudem a compreender a ação política em contexto de Estado fortemente regionalizado, o que não é exatamente o mesmo que um Estado federal, detenho-me nesta imagem do Parlamento espanhol, Congresso de los Diputados. A imagem foi convocada por Xosé Luís Barreiro Rivas na sua última crónica para a VOZ DE GALICIA, link aqui, na qual o controverso cronista e Professor da Universidade de Santiago retoma a sua prática já habitual de zurzir forte e feio no modelo Frankenstein de governação liderado por Pedro Sánchez, até aqui os Espanhóis são mais duros do que nós, a geringonça é uma designação bem mais suave. Roubo a imagem ao cronista, mas o meu ponto é outro, embora partindo da mesma evidência que Barreiro Rivas – a prestação de Sánchez no Parlamento como ilustração perfeita da sua espantosa capacidade de se manter à tona, com Feijoo a morder-lhe as canelas, mas ainda sem consistência para ele próprio se manter à superfície …)
A imagem que fui buscar à VOZ é muito rica porque lhe assistem múltiplas interpretações possíveis, algumas das quais se cruzam na perfeição com o meu olhar constante sobre a política espanhola.
Através de posts anteriores, os leitores mais fiéis já compreenderam que dedico especial atenção à força representativa da Mulher na política espanhola. Isso não significa qualquer desmerecimento pela destacada presença das Mulheres portuguesas na governação e na Assembleia da República. Significa apenas que a política espanhola despertou mais cedo para a superação do gap de modernidade e de urbanidade que caracterizava as sociedades ibéricas face ao mundo mais desenvolvido. E, nessa senda, é perfeitamente natural que a expressão política dessa participação feminina assuma um peso mais destacado na política espanhola. É um fenómeno transversal ao espectro político espanhol. No PSOE a tendência para a mobilização desse capital de energia e emoção já vem de Zapatero, embora Sánchez lhe tenha dado um enorme impulso. À esquerda do PSOE, o fenómeno está também já instalado, com vários nomes no PODEMOS e forças conexas a fazer o seu percurso e hoje com uma Vice-Presidente de Sánchez Yolanda Diaz a assumir sem tibiezas o seu projeto político de construir uma nova plataforma para a esquerda alternativa espanhola. SUMAR é uma designação sugestiva para esse projeto, podendo discutir-se se a maneira como tem evoluído no terreno é mais subtrativa ou divisiva do que aditiva. À direita, fenómeno passa por uma significativa transição. Pesos pesados da política do PP como Ana Pastor e Soraya de Santamaría (esta última hoje acomodada num grande escritório de advogados) estão a ceder caminho a figuras impetuosas como Isabel Ayuso). A agonia do Ciudadanos é também um passaporte de ofuscamento de personagens que prometeram tanto como Inés Arrimadas. Na extrema-direita do VOX o seu machismo tradicional lá permitiu que nas últimas eleições regionais andaluzas aparecesse um rosto feminino que também prometia muito, Macarena Olona, mas que se enredou na turbulência do seu discurso e deve ter dado força à linha mais tradicional da sua origem.
A imagem é rica pois evidencia a relação central entre Sánchez e parte da sua entourage feminina de representação política e de companhia de governação. E não falta a presença da própria Yolanda Diáz que apesar do seu projeto próprio aplaude Sánchez.
Poderia ir por aqui mas esse também não é o meu ponto. Ameaçado por todos os lados, seja pelas suas companhias nacionalistas de apoio parlamentar (nos próximos dias será de novo reatado o diálogo político com a Catalunha e a Generalitat), seja pelo crescimento nas sondagens do PP de Feijoo, robustecido com o resultado na Andaluzia, a prestação de Sánchez no Congresso de los Diputados para discutir o Estado da Nação traduziu-se em mais um surpreendente golpe de rins. A guinada à esquerda (os amigos do PODEMOS rejubilaram …) teve por foco o combate ao contexto inflacionário agressivo que domina a economia espanhola. Sánchez tirou da cartola o coelho de impostos extraordinários sobre a banca e as grandes empresas de energia. A direita obviamente que invocou o fantasma da fuga do investimento estrangeiro e a esquerda desengonçada rejubilou. Resultado, mais um fôlego para Sánchez, cuja estratégia por agora parece resumir-se à esperança de que a situação macroeconómica desanuvie e reduza o efeito de capitalização política que o PP tem vindo a cavalgar. De certo modo, Sánchez fez no Parlamento o que já tinha feito capitalizando a Cimeira da Nato em Madrid e a importância que Biden lhe concedeu.
Podem legitimamente suspeitar se o cronista se rendeu também aos encantos do “cortoplacismo” de Sánchez, do qual também António Costa por vezes também se aproxima. Confesso que o “cortoplacismo” não me agrada, nunca me agradou, por mais hábil que ele seja e nessa perspetiva tenho de reconhecer que Sánchez, embora por vezes exagere, em muitas situações é brilhante nessa arte. A questão interessa-me na medida em que existe uma dimensão que é frequentemente, senão ignorada, pelo menos claramente desvalorizada. As lideranças políticas são escolhidas pelos eleitores mais voláteis em função da perceção que alimentam sobre as personalidades em confronto (confiança fundamentalmente e também principais ideias programáticas) e obviamente também em função do contexto político que pode ser antecipado. Ora, muito frequentemente, este contexto político que determinou a perceção sobre o candidato não tem nada que ver com o contexto real e efetivo em que a governação e a atividade parlamentar irão decorrer. Assim, aconteceu em Espanha, já que grande parte da solução Frankenstein na governação e no Congresso se precipitou depois do ato eleitoral.
A dimensão menos analisada é a influência (um pouco evolucionista-darwiniana) que o contexto político de maiorias relativas instáveis e fragmentação polarizada em que a política espanhola mergulhou exerce sobre o comportamento das lideranças. Claro que pode dizer-se que cabe às lideranças políticas mais capazes superar esse círculo vicioso e captar os eleitores para as dimensões mais estratégicas da governação. Posso assinar por baixo, mas convém não esquecer que existe sempre uma situação de transição que é preciso gerir politicamente. É isso que Sánchez tem feito, provavelmente adensando traços do seu posicionamento político que o aproximam mais do “cortoplacismo” do que da governação mais estratégica.
Os cenários parecem claros. Muito provavelmente, Sánchez acabará por enredar-se na sua própria habilidade tática, até porque os coelhos a tirar da cartola também se esgotam. Mas tudo dependerá em meu entender do tempo em que um possível desanuviamento macroeconómico poderá observar-se.
Nota complementar
Já depois de ter publicado este post, dei de caras com a Carta do Diretor que Pedro J. Ramírez escreve no El Español sobre a habilidade tática de Sánchez na discussão do Estado da Nação. A comparação com as habilidades de Groucho Marx na manipulação em cena do seu charuto é das melhores coisas que tenho lido vindas da direita. O Diretor do El Español é uma personagem ímpar no seio da direita liberal espanhola. Vale a pena lê-lo, mesmo que para isso tenhamos de afinar o nosso sentido crítico (link aqui).
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