quinta-feira, 28 de julho de 2022

O DIABO ESTÁ NOS UPDATES

                                                                                 

(Sombrio e mais incerto são as palavras que adjetivam o título do mais recente update do World Economic Outlook do Fundo Monetário Internacional. A história dos updates das principais fontes de prospetiva aponta como grande regularidade para o endurecimento de cenários e daí o meu título de que o diabo está nos updates. Se pensarmos bem e se não abdicarmos da racionalidade, outra coisa estes desenvolvimentos do WEO dificilmente nos poderiam trazer. Estamos no meio de uma tempestade perfeita, as sequelas de uma pandemia que persiste embora os nossos comportamentos tudo façam para a esquecer, a eclosão de uma guerra que tem origem numa ameaça irredutível à estabilidade internacional sobretudo na Europa e uma cavalgada inflacionária, ardilosa quanto baste, porque nos fez permanecer demasiado tempo na dúvida temporária ou já enraizada/estrutural. E a ensombrar todos os cenários futuros, temos hoje a convicção de que afinal a Rússia não está tão isolada como isso, ou seja, a chamada perceção ocidental do apoio necessário à Ucrânia está longe de ser a cartilha do mundo, por muito que nos custe. Bastaria ontem uma evidência registada num estádio de futebol turco para o desmentir. Após o golo do Dínamo de Kiev que ensombrava as aspirações do Fenerbache a continuar as esperanças de participação numa fase de grupos da Liga dos Campeões, os fanáticos do clube treinado por Jorge Jesus, que decididamente não atina com a Liga dos Campeões, não encontraram melhor comportamento do que gritar em uníssono Putin, Putin, Putin …)

 

O update do WEO limita-se a confirmar que as três maiores economias do mundo, EUA, China e Zona Euro estão estagnadas, com alguns pormenores de diferenciação entre si. Nos EUA está aberto um debate sobre se deve ser declarada ou não situação de recessão económica, pois estranhamente os critérios de medida segundo o PIB ou o Rendimento não coincidem. Na China, a persistência da forma mais musculada de combate ao COVID 19 e agora a natural extensão dos efeitos Ucrânia acentuaram por sua vez as perspetivas de encolhimento do crescimento económico. E na União Europeia poderá dizer-se o que mais lhe irá acontecer, política, energeticamente e em termos de saúde pública, presentemente com a possibilidade da boa chama de Draghi poder dar lugar a um governo chefiado pela extrema-direita e pelos vistos já não será pelo fan de Putin, Salvini, mas por uma “querida” com ligações passadas ao pensamento nazi, Giorgia Meloni, de uma tenebrosa agremiação chamada de Irmãos de Itália (só o nome assusta).

É em cima ou coexistindo com estas perspetivas de estagnação ou recessivas que as ameaças inflacionistas ensombram o cenário e o tornam mais incerto. É verdade que, sobretudo nos EUA, o debate não está encerrado e continua a não ser evidente o chamado entrincheiramento das expectativas inflacionistas. É conhecida a dificuldade dos economistas em medir a pressão efetiva dessas expectativas. Há quem utilize as taxas de juro dos títulos a longo prazo nas quais os agentes económicos descontam as suas expectativas de inflação futura. Mas há quem prefira a informação dos surveys, elaborada a partir de entrevistas concretas a investidores e a consumidores. Resultado, persistem discrepâncias e continua a não existir uma evidência segura de que tenhamos entrado nesse estádio mais perigoso de reprodução da inflação, algo que se passou nos anos 70. Krugman tem dedicado a esta questão uma rigorosa atenção e ele está numa posição excelente para o fazer, pois passou de defensor de que a inflação seria temporária para entrar no grupo dos que aceitam que já não é apenas temporária. A 19 de julho, no New York Times (link aqui), voltou à carga e insiste que não há de facto ainda evidência desse entrincheiramento das expectativas. O que significa que a atuação do FED USA corre agora o risco de já não ser acusado de adiar perigosamente a subida das taxas de juro, mas sim o de contribuir para uma recessão que poderia ser evitada, já que as expectativas de inflação a longo prazo não são convincentes.

De qualquer modo, este “sombrio e mais incerto cenário” que o update do WEO do FMI nos traz coloca especial preocupação aos países com maior grau de endividamento. A economia portuguesa pode passar abruptamente de um brilharete de ritmo de crescimento em 2022 para alguma aflição em 2023, estando eu particularmente curioso quanto à estratégia que vai ser seguida para a preparação do orçamento de 2023.

E, talvez com algum grau de provocação aos meus amigos mais sensíveis ao velho argumento do combate às políticas “austeritárias” de má memória (fiz parte do grupo), não posso deixar de recordar alguns comentários positivos que aqui apresentei ao que então denominei de “conservadorismo fiscal” seguido por Portugal (João Leão) na abordagem à pandemia. A prudência fiscal então seguida e que tanto barulho provocou numa geringonça já em decomposição acabou por revelar-se bastante sensata face aos cenários atuais. As decisões macroeconómicas têm sempre um duplo significado quando analisadas à luz do tempo em que são tomadas e quando o são com alguma distância temporal. Por vezes, revelam-se desgraçadamente erradas. Outras vezes, revelam-se sensatas. Parece ter sido este o caso do conservadorismo fiscal pandémico. E estou certo que o Fernando Medina, atual ministro das Finanças, já o compreendeu.

 

Nota complementar

A Fundação Francisco Manuel dos Santos acaba de publicar Um Novo Normal? Impactos e lições de dois anos de pandemia em Portugal. O capítulo 2 da publicação designado “Crise e recuperação: dois anos de pandemia na economia portuguesa” já tinha sido aqui referido, através da participação no estudo do meu filho Hugo Figueiredo da Universidade de Aveiro. Nesse capítulo, a minha referência ao “conservadorismo fiscal pandémico” tem uma fundamentação mais aprofundada do que a que foi aqui aflorada nos meus posts. O update do WEO vem acrescentar sensatez a esse padrão. O que não nos livra das aflições pelas quais iremos certamente passar. Daí o meu foco no orçamento de 2023.

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