sábado, 2 de julho de 2022

NOTAS FUNCHALENSES - AEROPORTOS E AUTONOMIAS

(Enquanto espero um voo tardio da TAP para o Porto no aeroporto do Funchal, a questão do aeroporto de Lisboa paira estranhamente sobre o placard das partidas, já que é o terceiro voo hoje cancelado para a Capital (dois da TAP e outro da Easy Jet), sabe-se lá por que motivo, mas não me admiraria se fossem explicados pela paranoia da Portela, real, inventada ou simplesmente alavancada por incompetência de gestão. Entretanto, como sempre nestas ocasiões, lá regressam os patronos do HUB de Lisboa a mexer os seus cordelinhos e ata e desata continuamos na prática sem decisão estratégica que ponha fim à ameaça ambiental e de segurança urbana que representa um aeroporto com aviões a cruzarem os céus da segunda circular mesmo por cima dos nossos olhos de condutores atónitos com tão estranha companhia. Entretanto, o Sá Carneiro (Maia-Matosinhos) continua a receber prémios e a Norte os incrédulos jornalistas reconhecem que em matéria de gestão hospitalar o Porto metropolitano dá cartas. Levo a conversa para este tom, pois hoje vivi como visitante acidental o dia da autonomia regional da Região Autónoma da Madeira. Podemos questionar muita coisa no poder regional madeirense e discutir como o fiz no Congresso da APDR as suas dificuldades a uma maior complexificação e diversificação do sistema produtivo regional, mas o que não podemos ignorar é a resiliência dessa autonomia e a vida não tem sido fácil).

Hoje (1 de julho), pela manhã, na Praça da Autonomia, um aperaltado Miguel Albuquerque, no seu fato cinza escuro, riscas estilo Borsalino e gravata encarnada, acompanhado do Presidente do Parlamento Regional e pareceu-me o Vice-Presidente da Câmara Municipal do Funchal e um conjunto vasto de autoridades regionais protagonizaram uma sessão sóbria, singela, com banda e antigos combatentes, hino regional e nacional para desfazer quaisquer equívocos.

É um facto importante e singular da democracia portuguesa e temos dado pouca importância a esse facto, talvez irritados pelos tempos da sobranceria populista e regionalista do Dr. Alberto João, mas para além dessa espuma da política está uma conquista do Portugal democrático.

Na modéstia das minhas possibilidades, tenho tentado não confundir a discussão do modelo produtivo e urbanístico da Região e sobretudo da sua principal concentração, o Funchal, com a valorização da autonomia regional. E de facto o modelo escolhido pelo mercado da oferta turística no Funchal suscita todas as questões possíveis e imaginárias sobre a capacidade daquele gigantesco investimento em infraestruturas hoteleiras ter algum dia retorno compatível com a dimensão do capital fixo ali concentrado. E se o retorno desse volume de capital fixo é uma questão essencialmente do foro privado, já que o grau de “consumo” de espaço e de recursos naturais que tal investimento infraestrutural é essencialmente um problema público, exigindo fiscalidade pertinente para evitar a sua extensão para limites além do inadmissível.

É por isso que não deve ser ignorada a questão poder local-poder regional, no quadro das responsabilidades que o governo central tem em relação à autonomia. Hoje, quando nos dirigíamos a Câmara de Lobos, uma espécie de satélite popular do Funchal, constatei o início finalmente das obras para o novo Hospital da Madeira (Governo Central) e os progressos de ordenamento e alindamento da velha concha portuária de Câmara de Lobos, essencialmente um projeto local.

Desde que comecei a trabalhar em matérias relacionadas com o Funchal, mais se me formou a ideia de que se trata de um laboratório fabuloso para se trabalhar em cima de coisas construídas em ambientes de insustentabilidade total, logo que têm de ser interrompidas, e sobre as quais é necessário construir uma nova vida de opções, políticas e comportamentos. É assim o Funchal. Olha-se para o topo e lado a lado da beleza visual pressente-se a insustentabilidade total, com casas nos declives mais espantosos. Nesse topo ou perto dele, com viagem por teleférico, os jardins do Monte Palace, outrora pertencentes a Berardo, hoje geridos por uma Associação de Coleções, são uma entidade estranha, florescente de água e flora, povoada de uma coleção heterogénea de esculturas de origens e qualidade muito diversas. À medida que se vai descendo de quota e sobretudo abaixo dos grandes viários de circulação rápida, discutíveis para os tempos atuais (mas quem era então capaz de convencer o Dr. Alberto João desse tema da sustentabilidade futura?), vai-se percebendo a qualidade das intervenções, o valor do que foi preservado e sobretudo uma cidade que está talhada para receber.

Qualquer estratégia de intervenção, não importa o domínio que se trate, exige uma transição a partir do instalado que é necessário transformar. Compreendi melhor esta realidade no Funchal, mais do que noutro sítio qualquer. Porque, frequentemente, o instalado é inamovível ou a sua remoção implicaria custos insuportáveis. Retirando algumas exceções, a grande parte do Funchal quase inacessível e das inclinações que superam as de manual constitui residência das famílias de rendimentos mais baixos incapazes de responder ao custo do solo a meia encosta ou mais para baixo. Trabalhar a sustentabilidade do instalado é assim tão importante como abrir caminho na sustentabilidade do que vai sendo criado ex-novo.

Nota final: chegar de um voo já em plena madrugada e entrar em casa pelas três da manhã é coisa impensável noutros aeroportos e países. Afinal, tudo parece ter tido origem num pneu de avião que estoirou numa das pistas da Portela, isso explica os cancelamentos do Funchal para Lisboa na Easyjet e na Ryanair e os amigos de Lisboa que conseguiram o avião da TAP devem ter chegado à Portela pelas três da manhã ou mais. Praticamente em contínuo com os voos matutinos para África.

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