quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A DIMENSÃO PLANETÁRIA DA TRANSIÇÃO VERDE

(Na antecâmara próxima da Conferência Mundial do Clima COP 27 a realizar no Egito já na próxima semana, sucedem-se naturalmente os avisos e pronunciamentos sobre a gravidade da crise climática que estamos a viver. Entre os materiais que têm sido divulgados e que constituem a base da grande generalidade das notícias, entrevistas, alertas públicos que se têm multiplicado, o Relatório de 2022 sobre as emissões de gases sugestivamente designado de a janela que se fecha é talvez o documento de leitura mais prioritária (link aqui). Nos últimos dias, tem-se falado bastante do “policy gap” que se observa entre a ação climática dos mais desenvolvidos e o défice reconhecido de intervenção que pode ser associado aos países menos desenvolvidos. Como se isso fosse uma grande surpresa. Os números valem o que valem, mas surgiu a informação de que segundo os cálculos da ONU o investimento na ação climática dos menos desenvolvidos está a menos de um décimo do que seria necessário assegurar face às necessidades identificadas nesses países. É sobre a hipocrisia dessa pretensa surpresa que gostaria de escrever hoje.)

As reflexões que irei aqui produzir não devem ser entendidas como uma espécie de auto de desresponsabilização dos governos das economias menos desenvolvidas em matéria de política climática. Mesmo num contexto em que a redução da pobreza absoluta continua a ser para muitos países a prioridade absoluta e em que a gravidade da transição climática se abate sobre a vulnerabilidades desses países sob a forma de diferentes tipos de desastres naturais com efeitos devastadores sobre a pobreza que quer reduzir, haverá seguramente alternativas em matéria de políticas e intervenções que traduzam algum esforço de contributo para a mitigação do problema global.

Mas por outro lado não podemos ignorar que, nesses mesmos países, as prioridades e ambições do desenvolvimento não são as mesmas que norteiam as comunidades cívicas pró-ambiente das sociedades mais avançadas e os governos mais decididos a contrariar a deriva climática.

O economista de origem venezuelana e radicado nos EUA, Ricardo Hausmann, Diretor do Laboratório de Crescimento na Universidade de Harvard, um dos pais da teoria da complexidade como modo de leitura do desenvolvimento económico, interpela-nos de modo muito original: “Imaginem-se como ministro das Finanças de uma economia em desenvolvimento. Um fervoroso ambientalista tenta convencê-lo acerca do imperativo moral de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa do seu país. Rapidamente ficará aborrecido porque já ouviu falar disso e as suas preocupações estão orientadas para assuntos mais prementes. O seu país está cheio de problemas, desde a instabilidade económica até à inflação passando pelos desafios de financiar os serviços públicos. A redução das emissões não é uma prioridade”.

A hipocrisia sobre esta matéria assume diversas proporções. A crise energética e a transição climática apresentam uma dimensão planetária, todos o sabemos. Mas o contributo de muitas economias em desenvolvimento para o problema global é bastante pequeno, pelo que é compreensível (o que não significa, de modo nenhum, inação no campo climático) que outras prioridades se coloquem à decisão política de tais países.

Pode ser questionável que estas economias devam seguir rigorosamente as pisadas que as economias mais avançadas trilharam na sua mudança estrutural ao longo do seu processo de crescimento económico no tempo longo. Mas não podemos ignorar como sabiamente o refere Hausmann que existe ainda uma larga indeterminação e incerteza sobre as tecnologias que lançarão a evolução para uma economia de baixo carbono como algo de viável e sustentado.

O que o Diretor do Laboratório de Crescimento de Harvard nos propõe não é seguramente o “não crescimento ou decrescimento” desses países, mas antes uma reconsideração de novas estratégias de crescimento, em que preocupações como a eletrificação de processos anteriormente desenvolvidos com energias fósseis, a máxima capitalização de energias renováveis, a minimização dos custos do capital na exploração dessas tecnologias, a gestão dos riscos tecnológicos através de permanentes processos de vigilância tecnológica e a exploração das diferentes fontes de captura de carbono e a sua justa remuneração para estes países.

O ambiente competitivo em que a reconsideração das estratégias de crescimento deve ocorrer não é novidade face às condições em que algumas economias emergentes se distinguiram, enquanto outras marcaram passo e outras ainda se afundaram em diferentes armadilhas de perpetuação da pobreza. Assim, como a boa governação não deixará de ser um fator distintivo. Mas ignorar o papel do Ocidente na ajuda ao financiamento dessas tentativas equivalerá a um deserto moral em matéria de gestão da dimensão planetária do crescimento, da qual a tese do decrescimento em ambiente de absoluta necessidade de redução da pobreza representará a fórmula máxima da hipocrisia. Não abundam os economistas lúcidos nesta matéria. Hausmann é um deles e não terá sido por acaso que aqui chegou por via da complexidade económica como fator de transformação estrutural bem-sucedida. A procura de um contributo positivo das economias em desenvolvimento para a dimensão planetária da resposta climática não é afinal mais do que mais uma manifestação desses caminhos para a complexificação da estrutura produtiva dessas economias, não esquecendo a prioridade da redução da pobreza e a certeza de que ela será sempre mais eficaz em ambiente de economia aberta regulada pelos interesses do crescimento inclusivo.

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