(À medida que a subida continuada dos índices de variação dos preços relativamente ao mês homólogo do ano anterior se vai acentuando, tendo ultrapassado em outubro o limiar dos dois dígitos, com 10,24% no continente, e com isso projetando uma cada vez mais impensável inflação para o ano de 2022, mais se vai sentindo a inexistência de um debate sério sobre as razões desta aceleração brutal. A análise das taxas de variação por grupos de produtos como faz o INE na sua publicação com data de hoje permite concluir duas coisas relevantes: primeiro, a inflação sem habitação é ligeiramente mais elevada, no valor de 10,55%; segundo, são as variações dos produtos alimentares não transformados e os produtos energéticos com valores, respetivamente, de 19,02 e 28,45% que puxam claramente para cima o valor da taxa. Ou seja, se expurgássemos a taxa de inflação destes dois últimos de produtos, algo de equivalente à chamada “core inflation”, a taxa andaria pelos 7,15%. Regressando ao tema inicial apetece perguntar que debate tem havido para explicar esta mudança brutal do comportamento dos preços?)
Como regra geral acontece, a candeia dos americanos vai à frente e foi com base na inflação americana que o verdadeiro debate tomou rumo. Se é verdade que as eleições americanas de domingo mostraram que se sobrevalorizou o peso da inflação nos resultados eleitorais, por exemplo se o cotejarmos com a questão da política conservadora e punitiva sobre o aborto protagonizada pelo muito trumpiano Supremo Tribunal e por alguns estados mais reacionários nesta matéria, bem cedo se formaram duas posições. Por um lado, um grupo de economistas associou a emergência inflacionária a um fenómeno transitório. Por outro lado, um outro grupo alertou para a dimensão duradoura do fenómeno. Resta dizer que nesta primeira fase do processo, a tese da inflação transitória não vingou de todo. Alguns economistas integrantes do primeiro grupo, como Paul Krugman, vieram a terreiro reconhecer a interpretação errada que tinham feito. Porém, isso não pacificou o debate. Mesmo reconhecendo pela evidência que o fenómeno estava para durar, subsistem dúvidas quanto às suas origens. O que não é totalmente indiferente ao modo como o Banco Central americano estará ou não corretamente a combater a subida dos preços no quadro do seu mandato para os manter estáveis em torno da variação dos 2%.
A interpretação mais simplista que corre e que aceita sem reservas a abordagem do Banco Central é a que considera que a economia americana apresenta uma procura global superior à oferta, decorrente quer de consumos não imediatamente realizados com o grande estímulo económico de Biden face ao choque pandémico (criação de moeda pública), quer das perturbações e reduções de oferta que a pandemia e os confinamentos deixaram como legado próximo. A atuação do Banco Central neste contexto consiste em reduzir quanto o possível a procura global da economia, ajustando quer a moeda que o próprio Banco Central pode fornecer à economia, quer influenciando indiretamente a que pode ser lançada na economia pelo sistema bancário. Esta abordagem enfrenta sempre a dificuldade de controlar a moeda que pode ser criada por instituições financeiras não reguladas pelas autoridades monetárias que procuram liquidez através de ativos financeiros colaterais como os títulos da dívida pública[1].
Corre por estes tempos uma outra posição que não desliga o surto inflacionista da adaptação que as economias, entre as quais a americana, estão a realizar face à transição pandémica e à disrupção da guerra(2). Nessa base, não é fácil escolher que cabaz de bens deve ser considerado para avaliarmos se a subida de preços reflete excessos de procura ou se pelo contrário reflete resquícios de estranheza pandémica e disrupções da guerra. Para além da chamada inflação central (core inflation), que expurga os preços mais voláteis dos produtos alimentares e energéticos, alguns economistas expurgaram também bens como os carros usados ou hotéis, entendidos como mais sensíveis à tal estranheza pandémica. Por mais estranheza que isso nos provoque, não tem sido fácil nestes novos tempos de inflação encontrar os cabazes certos para definir os índices de preços mais convenientes para compreender as suas origens. Por exemplo, se concluíssemos que eram os produtos energéticos a explicar fundamentalmente a subida de preços, não seria seguramente a política restritiva de taxas de juro a mais conveniente para controlar o fenómeno. Medidas de contenção e poupança de energia seriam bem mais apropriadas.
O que merece atenção nos dados do INE ontem publicados é o facto da taxa de inflação ser ligeiramente mais elevada quando expurgamos a habitação do seu cálculo. Quer isto significar que as rendas estarão ainda desfasadas no tempo, refletindo um claro predomínio de rendas anteriores e de novos arrendamentos. Recorda-se que na generalidade dos países a habitação pesa bastante na “core inflation”.
Por curiosidade, consultei a variação mensal homóloga da remuneração bruta total por trabalhador no último ano para verificar se o entrincheiramento da inflação na relação salários-preços está já em marcha. Aqui está o gráfico:
Fonte: INE (ver link acima)
Moral da história: a política restritiva do BCE e dos bancos centrais em geral está a ser aplicada ainda sem uma compreensão rigorosa dos fatores que subjazem a esta subida brutal dos preços. Existe por isso o risco dessa política restritiva precipitar uma recessão desproporcionada. As boas práticas sugerem que o aliviamento do aperto monetário deve ser iniciado ainda antes da desaceleração da inflação fizer caminho, ponderado os lags temporais a que a política monetária está sujeita. Depois e não menos importante, já que a política do BCE se aplica indiscriminadamente a toda a União sem poder atender às especificidades de cada país, terão de ser as políticas fiscais e orçamentais destes últimos a corrigir na medida do possível os danos colaterais.
[1] O economista Ricardo Cabral publicou por estes dias um excelente artigo no Público sobre esta matéria, cuja leitura recomendo vivamente.
(2) Paul Krugman, depois de reconhecer o erro da interpretação da inflação como fenómeno transitório parece alinhar com este grupo na sua última crónica no NYT, que ele designa de fatores de "discombobulation"(em tradução livre, efeitos de confusão).
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