segunda-feira, 28 de novembro de 2022

AINDA HÁ QUEM NÃO SE ESCONDA!


(excerto adaptado de André Carrilho, http://www.dn.pt

João Cravinho é um dos poucos “senadores” que ainda nos restam. Sobretudo pela experiência que possui, pelo primado dos princípios que ostenta e pela coragem que mostra. Há dias, o ex-presidente da Comissão Independente para a Descentralização, cujo relatório foi entregue na data que lhe foi fixada e em tempo oportuno para poder ter consequências mas que acabou por conhecer o destino do fundo da última gaveta da secretária de António Costa, veio a terreiro para recordar o tema a pretexto de uma revisão constitucional minimalista que os dois grandes partidos nacionais estão a cozinhar.

 

Declarou Cravinho ao “Público” (o texto abaixo segue de perto tais declarações, tal como foram transcritas pela jornalista Helena Pereira) ser “um erro com consequências pesadas” o facto de a proposta de revisão constitucional do seu partido ser omissa em relação à questão da regionalização. E explicou que a atual Constituição foi armadilhada em 1997 (aquando da revisão constitucional negociada entre António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa que introduziu um referendo para a regionalização) na referida questão mas que nenhum partido mostra vontade de enfrentar o problema, o que a seu ver corresponde a uma oportunidade perdida para se resolver um “paradoxo” da Constituição (na medida na medida em que temos uma Constituição que, “ao mesmo tempo, ordena a criação das regiões administrativas e as inviabiliza”) que qualifica de “uma vergonha antidemocrática, um atentado à Constituição”.

 

Indo um pouco mais ao detalhe, Cravinho disse defender que seja alterado o n.º 1 do artigo 256 da Constituição (que consagra que “a instituição em concreto das regiões administrativas, com aprovação da lei de instituição de cada uma delas, depende da lei prevista no artigo anterior e do voto favorável expresso pela maioria dos cidadãos eleitores que se tenham pronunciado em consulta direta, de alcance nacional e relativa a cada área regional”), o qual significa que no referendo terão de existir duas perguntas, uma sobre o mapa e outra sobre a instituição em concreto de cada região a que respondem os eleitores recenseados nessa área ― uma formulação que considera errada (devia prever-se apenas uma pergunta sobre a concordância ou não em relação ao mapa de regionalização proposto), que encerra “um forte cunho antidemocrático” e que assim foi inscrita em 1997 para que “se aumentasse extraordinariamente a complexidade do processo”; ou seja, sublinha, trata-se de “um enviesamento da Constituição contra a própria regionalização” já que, se o sim ganhar na primeira questão a nível nacional, basta que alguma região diga que não para que assim fique inviabilizada a instituição da regionalização como um todo. E Cravinho não de coíbe mesmo de assim se referir ao Presidente, ex-líder do PSD e reputado professor de Direito: “Numa das lições de Direito Administrativo publicadas em 1999, Marcelo Rebelo de Sousa escreve, a propósito de [processo de revisão constitucional de] 1997 que ‘é mesmo difícil conceber um regime constitucional mais convidativo a uma rejeição de qualquer divisão regional do continente.’ Ele próprio assume-o dois anos depois”.

 

Por fim, e reportando-se à prática política recente de António Costa, Cravinho frisa que o que o que se está a fazer é “uma municipalização da regionalização”, através da progressiva transferência de competências do Estado central para as CCDR (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional), em áreas como a saúde, ação social, ambiente, educação e outras. E conclui: “Quando se faz a revisão constitucional dos direitos fundamentais, alargando-os muito, o problema que se põe é como concretizar essas expectativas com o Estado que temos. Se o Estado que temos já não dá conta do recado, se não satisfaz as grandes expectativas que existem sobre direitos fundamentais, que nalguns casos têm décadas, como é que se aumentam extraordinariamente as responsabilidades do Estado congelando-se ao mesmo tempo a organização do Estado?”.

 

Entretanto, a máquina comunicacional do Governo já pôs em marcha uma campanha de dúvida sobre se afinal o primeiro-ministro poderá cumprirá o compromisso assumido, e inscrito no programa de Governo, de realizar um referendo à regionalização em 2024. Sem prejuízo do que há dias desfasadamente reiterou a ministra da Coesão Territorial a tal propósito, tudo parece estar de facto a ser preparado para que assim não seja ― c.q.d. (como queríamos demonstrar), acrescento eu sem surpresa e com algum desdém.

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