(Não sei se os leitores deste blogue sentiram o mesmo que eu. Terão seguido em tensão permanente a evolução minuto a minuto dos resultados da segunda volta das presidenciais no Brasil, mostrando entre outras coisas as contradições de um país enorme – num país dilacerado pela desigualdade, tensão e violência, o sistema eleitoral brasileiro deu uma lição de modernidade ao mundo pela rapidez de publicação de resultados. Terão também experimentado a sensação estranha de alegria pela derrota do espantalho Bolsonaro e pela vitória da democracia, ou seja, de Lula da Silva, mas um cenário oculto de preocupação pairou sobre essa alegria. É sobre essa sensação estranha que gostaria de refletir hoje, aproveitando para criticar o cada vez mais tonto e inconstante João Miguel Tavares. Sim, com todas as dúvidas que o passado de Lula nos possa inspirar, a sua vitória difícil e apertada não é uma vergonha como o jornalista do Público nos quer fazer crer. É antes uma talvez derradeira esperança para o Brasil encontrar uma trajetória de dignidade, uma perspetiva mais inclusiva do crescimento brasileiro. O teste definitivo já está feito: o modelo de crescimento não inclusivo a que os apoiantes de Bolsonaro aspiram conduzirá inevitavelmente o Brasil à sua própria negação, ao caos, à barbárie e à defesa da desigualdade como ar que se respira ou água que se bebe para sobreviver. )
Tenho de vos confessar que hesitei bastante em referir-me ao momento que o Brasil tem vivido neste último mês. Nos bons anos da minha atividade universitária pude sem falsa modéstia considerar-me um estudioso da economia brasileira, particularmente do período apaixonante que foi a transição do modelo de industrialização altamente protegido da substituição de importações para a inevitável internacionalização do vastíssimo mercado interno brasileiro e consequente mudança do perfil de exportações brasileiras. Ilustres mestres como Celso Furtado (do qual assisti por acaso a uma aula na Sorbonne), Maria da Conceição Tavares, Aníbal Pinto, Fernando Henrique Cardoso e outros acompanharam-me nesse processo. Algumas hipóteses universitárias se colocaram de visitar o Brasil em trabalho mas quis a vida que não se confirmassem e como também em turismo nunca se proporcionou essa possibilidade fui-me afastando do conhecimento cúmplice da economia brasileira. Progressivamente, foi-se enraizando a ideia de estranheza explicativa face aquele modelo, eu próprio polarizado entre duas visões da sociedade brasileira, a que nos chegava via televisão e a que nos era oferecida por gente praticante do amor e vivência do Brasil como Alexandre Lucas Coelho (Vai Brasil de 2013, Tinta da China e Deus Dará de 2016 também da Tinta China continuam a ser as minhas principais inspirações).
As eleições de domingo passado oferecem-nos uma sociedade brasileira que culmina a evolução de todos estes anos. Meio por meio como o dirão os próprios brasileiros, a imagem simultaneamente perfeita mas também trágica da polarização em torno de um modelo desigual. Quando situações deste calibre se instalam, as diferenças em torno do que fazer e como fazer esbatem-se e formam-se dois grupos: o dos que por mera sobrevivência não querem abdicar da sua posição no topo social e da distribuição do rendimento e o querem prolongar por todos os meios possíveis (a ponto de poderem abdicar da democracia) e os que protagonizam a parte mais desfavorecida que se estão a marimbar para a eventual corrupção se conseguirem assegurar a sobrevivência diária e alguma quota de esperança para os seus filhos. Não quero crer que todos os brasileiros apoiantes de Bolsonaro se revejam na sua figura e nos seus métodos. Para muita gente, Bolsonaro é meramente instrumental, foi o que se pôde arranjar para assegurar a reprodução do status quo da desigualdade, do crescimento não inclusivo e da irresponsabilidade ambiental. Do mesmo modo, nem todos os que votaram Lula no domingo se reconhecem no passado do PT (em meu entender uma coisa é a corrupção institucionalizada de que o PT se aproveitou para financiamento do partido, outra diferente são os deslizes pessoais de Lula). Mas compreenderam que o valor da defesa dos valores da democracia cantava mais alto do que a recriminação de Lula.
A isto pode chamar-se a tempestade perfeita da polarização, que está declaradamente instalada no Brasil e também nos EUA, anunciando tempos difíceis para a preservação dos valores e dos métodos democráticos.
Desafios ciclópicos de governação vão colocar-se. Não ignorando os tempos turvos que irão formar-se até à tomada de posse de Lula da Silva e a entrada em funções do seu governo, de novo vai ser necessário criar uma mínima base inclusiva. O próprio Bolsonaro já em desespero de causa nos últimos dias da contenda eleitoral teve de engolir as suas ideias de que não havia fome no Brasil e aumentar apoios sociais. Com um Governador pró Bolsonaro na Amazónia e outro apoiante do derrotado em São Paulo (o emergente Tarcísio), mas muitos mais, temos uma ilustração das dificuldades que vão colocar-se à governação. No caso da Amazónia, uma externalidade para todo o mundo, os pesados interesses da desflorestação e do agro-alimentar intensivo só em meu entender poderão ser travados com um grande apoio mundial à preservação da Amazónia, se é que nestes dois meses o faroeste da sua exploração não irá intensificar-se para lá do não-retorno. Dificilmente o governo de Lula poderá arcar sozinho com essa responsabilidade.
Em síntese, o mundo democrático estará com os olhos postos no Brasil para encontrar elementos válidos e credíveis para responder a esta questão: como é que se sai virtuosamente de uma polarização extrema, do tipo meio por meio?
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