sexta-feira, 4 de novembro de 2022

E SE MÁRIO CENTENO…

(Paulo Buchinho, https://expresso.pt

Mário Centeno (MC) é um personagem algo estranho, alguém não facilmente definível à luz dos mais comuns critérios de avaliação de pessoas; mostrou-o claramente em muitos episódios ocorridos durante a sua passagem pelo Ministério das Finanças, como já antes o tinha feito no quadro da sua “sangrenta” disputa com o então governador do Banco de Portugal (Carlos Costa) e como agora o estará a continuar a fazer no contexto do seu atual exercício de governador dessa Instituição. Ou seja, MC tem uma agenda muito própria e não parece ser um ser disponível para hesitar perante qualquer escolho que lhe seja colocado ao desenrolar integral dos seus caminhos.

 

Dito isto, MC é um economista sagaz e muito competente, como bem o demonstram a sua carreira académica (com validação de Harvard) e os excelentes resultados que alcançou enquanto ministro (ainda que com a irritante ajuda das cativações e alguns lamentáveis incidentes de percurso que o tempo vai relevando). Na semana transata, a jornalista São José Almeida até já o colocava como uma hipótese de recurso relativamente a uma necessária candidatura única da área socialista à Presidência da República, embora pessoalmente esteja em crer que o seu foco é nitidamente outro, por razões de realização lógica em termos de carreira, de ordem financeira óbvia e também de vontade de evitar cargos políticos altamente desgastantes, mediáticos e chatos: o de vir a substituir Christine Lagarde à frente do BCE. Teríamos, aliás, um momento interessante e paradoxal (ou desquilhoante, como se diz a Norte) da vida pública portuguesa se o “filho” que Costa tão cuidadosamente criou em termos políticos viesse a tornar-se um dos maiores obstáculos ao seu grande e visível objetivo futuro de ocupar um lugar no seio das instâncias europeias.

 

Vem tudo isto a propósito de uma entrevista que MC concedeu ao “Público”, não certamente sem uma estreita conexão com as despropositadas acusações de Marcelo e Costa ao BCE (ineficácia do aumento das taxas de juro no combate à inflação, agravada por um risco de assim se estar a contribuir para criar uma recessão) a que aqui aludi em post de 31 de outubro. Uma entrevista em que MC é claro no alinhamento com a política monetária que está a ser prosseguida pela autoridade europeia na matéria, seja por motivos de natureza estritamente técnica e racional seja por motivos (digo eu) associados ao caráter favorável de uma distanciação (necessariamente inteligente) em relação àqueles dois figurões que comandam a política portuguesa. Começa ele por dizer, com total propriedade técnica e até mesmo política, quanto ao modo como encara as críticas da referida dupla: “Não vou reagir às críticas. Mas vou tentar explicar o porquê da política monetária e o porquê da inevitabilidade de haver uma ação da política monetária. A inflação é uma perturbação significativa para o crescimento económico quando é superior a 2%. Esse fenómeno inflacionista por si só, se não estiver controlado, gerará um comportamento negativo da economia e trará recessão. A política monetária não é o fator de instabilidade, o fator de instabilidade é a inflação. O problema não está na política monetária, está na inflação.

 

Depois, e sobre o facto de a inflação ser provocada por choques de oferta e, portanto, algo que as subidas de taxas de juro do BCE não conseguem resolver, refere MC num notório aceno aos atuais responsáveis do BCE: “A inflação é um sintoma. E a política monetária do BCE interpretou muito bem esse sintoma nas suas causas subjacentes. De facto, a inflação surgiu nas nossas economias por um choque da oferta. E é aceite generalizadamente que a política monetária não atua de forma eficaz sobre os choques de oferta. Há muitos que criticam a atuação do BCE por tardia. Mas o BCE interpretou esses sintomas da maneira certa.” Ao que acrescenta: “Neste momento, temos dois fenómenos. Passámos a fase em que podíamos — e tínhamos razões para o fazer — interpretar a inflação como um fenómeno temporário. O agudizar do efeito da recuperação pós-covid, com as medidas de covid-zero na China e com as dificuldades que se mantêm nalguns bens intermédios essenciais à nossa produção e, numa segunda fase, a invasão da Ucrânia pela Rússia vieram tornar mais agudo um problema que de início se considerou que podia ser temporário. Isso faz com que uma inflação demasiado alta por muito tempo, mesmo quando ela tem uma origem no lado da oferta, necessite de ser atacada para que o BCE e a política monetária na zona euro não percam a credibilidade de conseguir controlar a inflação no médio prazo. É importante lembrar que a política que estamos a definir não tem o objetivo de controlar a inflação amanhã. Nem no mês que vem. O objetivo é controlar a inflação no médio prazo, é isso que está no mandato do BCE.” E, mediante uma insistência do entrevistador (mas como é que o BCE controla a inflação se as suas causas estão do lado da oferta?), arremata ainda: “Há outros fatores a contribuir neste momento para a inflação, para além dos do lado da oferta. Devido ao volume de poupanças que as famílias e as empresas acumularam ao longo da crise do covid e ao estado do mercado de trabalho, que é muito bom, assistimos principalmente durante o segundo e terceiro trimestres deste ano a uma pressão sobre o lado da procura muito visível. O sector do turismo é um desses exemplos. A recuperação do turismo estava prevista acontecer até ao final de 2023, mas ela já aconteceu no segundo e terceiro trimestre deste ano a nível europeu. E Portugal lidera a este nível. Aliás, os dados do PIB desta segunda-feira mostram que Portugal é um dos países que mais crescem, quer em termos homólogos quer em cadeia, na União Europeia. Isso é extraordinário que aconteça, e bom. Mas tem este problema: há de facto um avolumar de algumas pressões, que eu acho que são localizadas, não são generalizadas, do lado da procura. Isto, com a manutenção das pressões do lado da oferta, conflui numa pressão inflacionista que não está a abater.

 

MC completa as mensagens que cirurgicamente dirige na notável entrevista aqui em apreciação com vários outros tipos de considerações pertinentes, de entre as quais destaco as seguintes três: (i) quanto a expectativas de futuro próximo, sublinha que “para que esse pico [de inflação] seja atingido [permitindo que se ganhe um significativo grau de previsibilidade sobre a política monetária], é preciso que a credibilidade da política monetária seja um facto, o que implica que três pressões internas [via custos salariais, via conservadorismo nos preços e margens de lucro por parte das empresas, via política orçamental e sua capacidade de focagem naqueles que mais sofrem com a inflação e não em medidas transversais que sejam fatores de sustentação dos aumentos dos preços] na área do euro contribuam para que a inflação seja reduzida” ― em suma, “tudo o que não for feito nessa dimensão vai ser pedido à política monetária, por via de taxas de juro mais elevadas”; (ii) quanto a dimensões mais audíveis em Frankfurt e Bruxelas, sublinha ser “um dos maiores apoiantes da noção de coordenação de políticas, que funcionou de forma absolutamente exemplar na Europa pela primeira vez em 2020” e que “precisamos dessa cooperação” porque “a grande função dos bancos centrais se ela for conduzida contra as restantes políticas ou contra os desenvolvimentos económicos não vai ter sucesso”, ou seja, porque “será preciso ser mais interveniente com taxas de juro mais elevadas”; (iii) sobre Portugal, e não escamoteando o seu papel passado e presente nos resultados que vêm sendo obtidos, sublinha que “no contexto europeu essa política [orçamental de Portugal] é compreendida e entendida como estando a atingir os objetivos essenciais da política orçamental nesta fase. Por exemplo, o que tem acontecido ao rating da República Portuguesa nas últimas semanas é sinal de que é compreendido esse esforço. O Estado, também em Portugal, como na Europa [relativamente à qual deixa mais este recado a destinatário deliberado: ‘nos EUA, a política orçamental foi não só errática como excessivamente generosa, o que depois motivou a resposta muito acentuada da política monetária’], foi o que mais respondeu, do ponto de vista do endividamento, à crise da covid. E, portanto, a política orçamental tem de se guiar por um carácter de sustentabilidade.

 

Que não combater a inflação não é uma opção para o BCE, por um lado, e que a alternativa de manter taxas de inflação elevadas teria um custo recessivo maior do que aquele que o aumento das taxas de juro provoca, por outro, eis, de modo talvez excessivamente sintético, como MC se quis posicionar em relação ao tema económico-financeiro do momento em Portugal (aumento das taxas de juro do BCE e seu impacto sobre as condições de vida dos cidadãos) e, à boleia, ao descoco com que Marcelo e Costa vieram a terreiro criticar sem a devida sustentação a política que está a ser prosseguida por Lagarde e seus pares. Convergentemente, mas com outros olhos, o jornalista Sérgio Aníbal optou por salientar as seguintes ideias-força: (i) ainda antes de o BCE ter subido os juros pela primeira vez em julho, a generalidade das economias europeias já estava a abrandar; (ii) é a inflação elevada, com o efeito que tem no poder de compra e no comportamento dos agentes económicos, e não a política de subida de juros para a combater a culpada de criar um risco de recessão; (iii) também há agora pressões inflacionistas do lado da procura a agravarem a situação. Será que MC está igualmente a olhar para o médio prazo?

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