(Reina por aí excitação que chegue sobre os comentários críticos que Presidente da República e primeiro-Ministro têm formulado relativamente à política restritiva do BCE de subidas sucessivas da taxa de juro de referência para combate sistemático à inflação. Certamente que os dois representantes máximos da hierarquia do Estado ter-se-ão aconselhado com os seus assessores para poderem pronunciar-se sobre tal matéria. E, se não tiver sido caso disso, num país em que todos comentam tudo ninguém levará a mal. Mas alguns dos comentários mais recalcitrantes sobre a ousadia de Marcelo e Costa vão mesmo ao ponto de os acusar de cuspirem na sopa que nos reconfortou no passado, criticando injustamente uma instituição que foi decisiva em momentos-chave da crise das dívidas soberanas. Não partilho de todo essa vozearia dos que defendem que Marcelo e Costa deveriam estar calados sobre o assunto. A saudável independência do Banco Central Europeu não significa que esteja acima de quaisquer críticas. E conviria recordar que a União Europeia influenciou de origem a atuação do BCE ao atribuir-lhe um mandato exclusivamente comandado pelo objetivo da estabilidade dos preços, fruto da ortodoxia monetária que então comandava o Diretório europeu. É nesse contexto que vale a pena tecer algumas reflexões, não obviamente para dar ou não conforto ou razão a Marcelo e Costa, eles lá sabem o que fazem, mas sobretudo para ir além da vulgata que paira sobre esta questão na imprensa portuguesa.)
A natureza uni-objetivo do mandato estatutário do BCE (a estabilidade da variação dos preços em torno do valor dos 2%) faz com que, frequentemente, se perca de vista que, verdadeiramente, o que importa é maximizar o número de europeus que querem trabalhar o possam fazer com o mais elevado rendimento possível, seja presentemente, seja no futuro. Como é óbvio, a manutenção e até agravamento da pressão inflacionária perturba esse desígnio, já que os europeus que queiram e possam trabalhar irão fazê-lo com perda de rendimento real. Para além disso, essa pressão inflacionária tenderá a exacerbar a desigualdade na distribuição do rendimento, fazendo descer o peso dos salários no rendimento nacional a favor da maior proeminência do peso dos lucros.
Embora a inflação atual tenha outras dimensões de origem que não apenas o excesso de procura face a uma oferta global que tardou a recuperar do efeito pandémico e levou com a guerra da Ucrânia em cima pouco depois, ou seja enfrente fatores de oferta derivados da disrupção mundial em que estamos mergulhados, tal como a conhecemos desde há longo tempo o combate à inflação por via da política monetária tem intrinsecamente uma natureza restritiva. Por isso, não é sério insurgir-se contra o princípio de que o BCE pode precipitar uma recessão, como por exemplo o economista da área do PSD Fernando Alexandre tem vindo a sustentar. Neste tipo de conjunturas, a intervenção dos Bancos Centrais é tipicamente uma ação em fio de navalha. Por um lado, se as subidas das taxas de juro de referência não forem promovidas com rigor e bom senso o risco é a sua atuação poder precipitar uma recessão. A política monetária está inevitavelmente condenada a lags de efeitos e tudo depende essencialmente da qualidade e diversidade dos elementos de supervisão da atividade económica que forem postos em prática. O fundamental é perceber se a economia está já num estado rumo à estabilidade dos preços ou se, pelo contrário, está ainda longe de revelar essa tendência. Mas, por outro lado, qualquer hesitação de intervenção por parte do Banco Central pode ser entendida como motivo para aumento de prémios de risco e subida das expectativas de aumentos de preços. Tal como Lawrence Summers o assinalou com a perspicácia habitual, primeiro o Banco Central americano e depois, por reação, o BCE optaram por uma política restritiva acima do esperado, visando desde logo confinar as expectativas.
O risco da política monetária restritiva ser objetivamente recessiva é de facto muito elevado. Como dizia por estes dias o ministro da Economia e das Finanças francês Bruno Le Maire, o problema é que face a essa quase inevitabilidade a política fiscal de compensação dos efeitos recessivos e controlo social dos seus danos deveria assentar numa ampla coordenação ao nível europeu e não assistirmos a políticas orçamentais a la carte.
Por outras palavras, a independência da política monetária conduzida pelo BCE não pode significar descoordenação ou conflito patente entre política monetária e política fiscal, não esquecendo a coordenação a nível mundial para intervenções rápidas nos países mais atingidos pela valorização do dólar e pela mundialização da inflação.
Diria, em síntese, que ignorar o risco da política monetária restritiva ser recessiva releva do mundo da mais pura ilusão. Nesse contexto, minimizar o tempo de subidas de taxas de juro de referência e coordenar as respostas da política fiscal de contenção de danos parece essencial
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