domingo, 6 de novembro de 2022

O QUE É QUE SE PASSA COM MARCELO?

 


(Era antecipável que o estilo de intervenção permanente do Presidente Marcelo, pronunciando-se incontinentemente sobre tudo, teria algum dia de conflituar com a razoabilidade do exercício do cargo. Um estilo dessa natureza penaliza obviamente a “gravitas” que tem de presidir a algumas tomadas de posição. Nessa torrente comunicacional o essencial passa por acessório e o seu contrário, perante jornalistas que disputam as afirmações do dia. Mas o que se tem passado nos últimos tempos ultrapassa já essa crónica anunciada dos riscos da exposição permanente. Em meu entender é de outra natureza e por isso justifica que me ocupe dessa deriva.)

Olhando para trás e tendo em conta tantos anos de intervenção cívica e exposição mediática do personagem, a minha interpretação da personalidade Marcelo Rebelo de Sousa assenta nesta ideia relativamente simples, mas pouco comentada. Marcelo tem sido uma combinação permanente, em busca de um equilíbrio, entre uma consciência católica profunda e um maquiavelismo de supra inteligência. Há quem confunda esta última característica com a de comentador político, mas erradamente em meu entender. O comentário político de Marcelo é apenas uma manifestação do seu maquiavelismo relativamente inato. Este manifestar-se-á em dimensões que não são do conhecimento público e que fariam da sua “magistratura de influência” um caso raro de estudo, que não sei se algum dia irá ser enfrentado por alguém melhor informado O encontro e equilíbrio entre estas duas dimensões do Presidente esteve na origem da sua inconfundível presença na vida política portuguesa e estendeu-se de forma clara ao exercício da Presidência da República.

Ora, se recorrermos ao tempo mais recente, o equilíbrio entre essas duas dimensões parece ter-se rompido. As sucessivas trapalhadas em torno das indecisões e encobrimentos da Igreja em relação às questões do assédio e do abuso mostraram-nos um Marcelo inquieto, a meter os pés pelas mãos, com sucessivas correções do que tinha dito, com a santa preocupação de proteger as autoridades e a hierarquia religiosa, as quais deve dizer-se não lhe facilitaram a vida, antes pelo contrário. O Marcelo devoto perdeu a racionalidade e transmitiu para os Portugueses uma ideia de impunidade para a Igreja que nos desconcertou a todos. Talvez tenha sido esta situação a mais gravosa da inquietude presidencial mais recente.

Esta semana Marcelo teve uma das suas intervenções públicas mais infelizes, tendo por destinatária a ministra da Coesão Territorial Ana Abrunhosa. O tom da intervenção manifestamente fora do contexto da gravitas presidencial e a confusão e impreparação com que o ralhete foi produzido dão que pensar e sugerem que o Presidente perdeu aquele equilíbrio a que nos referíamos há pouco. Marcelo devia saber que Fundos Europeus (a programação plurianual de FEDER, FSE + e outros fundos, FEADER e FEAMPA) e o PRR não têm o mesmo sistema de supervisão. O que o levou pouco tempo depois a autocorrigir-se, precisando que se referia ao PRR e não aos Fundos Europeus em geral. Mas o Presidente deveria também saber que o problema central com os Fundos Europeus não é estritamente uma questão de execução, mas também de qualidade nessa execução, sobretudo em termos de qualidade de projetos e de dimensão estratégica dos mesmos. Ou seja, Marcelo parece mais apostado em encarar os Fundos como um instrumento de política conjuntural do que sublinhar o seu alcance estratégico.

Mas para além disso o tom daquela intervenção não é também digno da gravitas presidencial.

Não faço a mais pequena ideia do que o confessor ou confessores do Presidente estarão a transmitir-lhe e também o que os seus assessores mais próximos (exercerão alguma influência?) pensam sobre o assunto. O que me parece evidente é que o equilíbrio entre o Marcelo devoto e o Marcelo racional tem sido quebrado demasiadas vezes. Ora o país já tem problemas suficientes para alguém com peso mediático complicar ainda mais a situação.

Nota final:

Independentemente do que se possa pensar de positivo ou negativo sobre a ministra da Coesão Territorial, apetece perguntar o que é uma Ministra deve fazer quando leva em cima com despautérios presidenciais deste calibre?

 

 

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