(Uma estranha e perigosa sensação de déjá vu emerge quando comparamos as eleições intercalares de hoje com a que deu no passado a vitória a Trump perante uma atónita Hillary e a ainda mais atónita família Democrata. A trumpização declarada e sem pudor do Partido Republicano, com o aumento inequívoco dos candidatos Republicanos que partilham a maneira de estar na política do ex-Presidente e a ele prestam devoção, trouxe como no passado a estas eleições um ambiente tóxico de desinformação, de intimidação, de negacionismo do mais rasca que se conhece e de suspeição. Ou seja, o ambiente das intercalares prolonga a vergonha do que acontece após a vitória de Biden. Os machados de guerra não foram enterrados e na sequência da invasão do Capitólio, da intimidação sobre Nancy Pelosi e da ofensiva conservadora no Supremo Tribunal de Justiça o ambiente criado faz recear o pior. Fico com a amarga sensação de que a Democracia e os Democratas americanos são inábeis a lidar com este tipo de postura de adversários (mas a questão subsiste, como lidar com esta gente?), mesmo que não possamos ignorar o facto das intercalares serem tradicionalmente nos EUA um veículo de protesto contra a governação em exercício. Como em plena reta final destas eleições Trump se deu ao luxo de ocupar o derradeiro espaço mediático com a declaração do seu eventual regresso em 2024 e, a dar crédito aos cenários possíveis enunciados pela imprensa americana, com destaque para o New York Times baseados numa multidão de sondagens, adivinha-se o pior. Começo a ficar farto dos que desvalorizam tudo isto invocando a qualidade e resiliência das instituições americanas. O argumento no Reino Unido era similar e todos nos apercebemos como a qualidade do passado nem sempre chega para esconder a degradação moral e política do presente …)
Depois de tomar o pulso com algumas leituras ao ambiente destas eleições intercalares, percebi rapidamente que a onda Republicana em alta está concentrada em três temas centrais – inflação, crime e imigração. Desta tríade temática só a dimensão da inflação corresponde a informação objetiva e sentida pelos contribuintes americanos. Sabemos como esta matéria é viral do ponto de vista da formação das expectativas eleitorais, ainda que a economia americana não esteja propriamente em crise e os níveis de desemprego continuam extremamente baixos. Os dois focos da vozearia dos candidatos Republicanos não correspondem a qualquer informação objetiva e inequívoca. Mas para além do que estes três temas trazem à força dos candidatos Republicanos, uma parte deles não se inibe de continuar a esgrimir o negacionismo quanto aos resultados das últimas Presidenciais e à vitória de Biden. O que significa que estas intercalares podem acrescentar vários graus à polarização existente.
Do lado dos Democratas, os temas têm sido obviamente a penalização da Mulher e dos seus direitos que o reforço dos Republicanos e possível liderança das duas Câmaras pode representar e a defesa da democracia, com o pesado argumento de que ela está em perigo e ameaçada pela deriva dos Republicanos afastados da sua matriz constitutiva. O que quer dizer que a força da mensagem política dos candidatos Democratas pode estar ameaçada pela desvalorização do papel da Democracia que de modo larvar está a crescer nas sociedades mais polarizadas. E pela aragem também se compreende que acenar com as dificuldades que uma vitória estrondosa dos Republicanos pode colocar ao apoio à invadida e agredida Ucrânia é coisa que pode ter pouco impacto junto do eleitorado que privilegia as suas condições de vida mais próximas. É verdade que o apoio dos EUA à Ucrânia resultou de votações de larguíssimo espectro nas duas Câmaras. Dirão alguns que faltar a esse compromisso seria uma rude violação dos princípios em que o Congresso e o Senado assentam. Mas há que ter cautela com o facto do vírus do negacionismo se propagar com preocupante facilidade.
Estou pessimista com o que esta malfadada terça-feira nos poderá trazer, sobretudo do ponto de vista da antecipação do que pode acontecer em 2024. Para já, se compararmos com a celeridade de publicação dos resultados no Brasil no passado domingo, o arrastamento do conhecimento dos resultados da noite de hoje traz-nos notícia sobre um sistema eleitoral americano inseguro, vulnerável e bastante propício à propagação de narrativas de viciação da realidade.
Os EUA são de facto uma sociedade paradoxal, moderna e anacrónica simultaneamente, e sobretudo polarizada nos máximos históricos.
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