segunda-feira, 13 de março de 2023

A RELEVÂNCIA DO CONTEXTO DE PARTIDA

 


(Por razões profissionais e também cívicas, tenho dedicado nos últimos dias alguma atenção ao conjunto de medidas de política de habitação em discussão pública, que fecha hoje para os projetos de decretos-lei 75/2023 e 111/2023 e se prolonga até ao fim do mês para os projetos de Lei 64/2023, 73/2023 e 74/2023, as que envolvem trabalho e discussão futuros no quadro da Assembleia da República. As razões profissionais devem-se ao facto de ter ainda em mãos a avaliação externa do Programa 1º Direito para o IHRU e as cívicas explicam-se porque entendo que as políticas de habitação representam hoje um grande desafio para os governos de pendor socialista ou social-democrata fazerem a diferença relativamente a forças políticas mais presas à ideologia de mercado. O tema da reflexão que consta deste post não pretende ser um contributo formal para a referida discussão pública, decidirei depois se o vou inscrever no portal de consulta pública criado para o efeito. Pretendo, por agora, chamar apenas a atenção para a relevância do contexto de partida a que estas medidas se referem, mostrando que a situação global do país não é propriamente a mais favorável para lograr atingir respostas rápidas e com resultados numa matéria em que a premência das necessidades é indiscutível.

Como pano de fundo de toda a reflexão, devo avançar que não se trata de matéria amigável para uma consulta pública séria. Não propriamente porque o tema seja árido ou tecnicamente muito exigente. Mas o método utilizado pelo Governo para lançar a discussão, primeiro com a publicação de um “power point” sumário que deu origem às mais diversificadas especulações e só depois disponibilizar os diplomas legais em projeto não é a solução mais amigável para suscitar o debate. Acresce que os novos diplomas, na sua esmagadora maioria destinados a alterar legislação anterior, para serem plenamente compreendidos no âmbito do que pretendem alcançar exigem a leitura dos diplomas anteriores, gerando um mosaico emaranhado de revogações e alterações que requerem grande fôlego de pesquisa ao cidadão que pretenda intervir. Para facilitar a discussão, os novos diplomas deveriam ser apresentados em forma consolidada, retomando artigos que não foram alterados e assinalando a cor diferente as alterações entretanto introduzidas.

Podem dizer-me que se trata de uma questão simplesmente formal ou até de lana-caprina. Mas não é. A linguagem jurídica não está ao alcance de todos e se além dessa dificuldade terminológica os diplomas em discussão se apresentam truncados, apenas com as propostas de novidade e alterações, obrigando o cidadão a percorrer toda a legislação anterior, então o prazer da participação cívica transforma-se em pesadelo.

Passemos além do pesadelo formal e ensaiemos a reflexão.

Qualquer política que se pretende disruptiva para fazer face a um contexto de grande exigência não pode ignorar que ponto de partida teremos para transformar.

Numa primeira apreciação ao conjunto de medidas, direi que a natureza do ponto de partida é praticamente esquecida. Primeiro, porque o conjunto de medidas faz praticamente tábua rasa do quadro estratégico apresentado pela Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) constante de Resolução do Conselho de Ministros de maio de 2018, que enquadra os instrumentos de política de habitação, que inclui programas como o 1º Direito, Porta de Entrada, Arrendamento Acessível, Porta 65 Jovem e outros. Falta na apresentação deste novo conjunto de medidas a explicação se o referido quadro estratégico está ultrapassado ou se, pelo contrário, se destina a alargar o seu âmbito e a acelerar a produção de resultados, dado o agravamento do contexto. Segundo, porque não é realizado nenhum esforço para compreender as dificuldades de implementação do conjunto existente de instrumentos. Era sobre esta última dimensão que gostaria de tecer algumas considerações.

A promoção de habitação, de reabilitação e construção nova enfrenta um fardo de contexto, que deriva essencialmente de um quadro administrativo bastante complexo, vivendo um processo de descentralização ainda bastante truncado, incompleto e não tendo ainda dado origem a uma reforma administrativa plena que reflita as novas condições de descentralização existentes, por mais limitadas e mitigadas que elas sejam. Além disso, as condições de cadastro, registo predial e inscrição na Autoridade Tributária refletem um país ainda pobre e envelhecido, onde existem inúmeras imprecisões e incorreções que os promotores têm de resolver para compor a situação. Quando falamos com Municípios a propósito destas questões todos reconhecem a existência desse tipo de problemas e os efeitos que eles trazem em matéria de operacionalização e de concretização de projetos de promoção habitacional. Todos temos também disso consciência quando nos cabe resolver algum problema familiar de transmissão de propriedade ou de habilitação de herdeiros ou operacionalização de partilhas. Estas dificuldades de cadastro e registo estende-se ao próprio caso de Estado proprietário, dispensando-me aqui de mencionar o ridículo da situação do Estado não ter o seu próprio património devidamente inventariado e cadastrado.

Por outro lado, regulação e planeamento são, regra geral, pouco fluidos e ágeis trazendo permanentemente o risco dos processos de agilização significarem empobrecimento da qualidade. No conjunto de medidas agora em discussão pública, apenas as operações de urbanização e loteamento permanecem com processos de licenciamento, imputando-se agora a projetistas a responsabilidade pelo respeito das regras de construção. Trata-se de um salto importante no domínio da accountability de projetistas que têm aqui uma oportunidade de eleição para demonstrar o seu rigor profissional.

A todo este problema de um contexto jurídico-administrativo complexo e pouco ágil, há que acrescentar a situação específica em que a construção civil portuguesa se encontra, que resulta em grande medida do facto da crise de 2011-2012 ter destruído muitas empresas e ter colocado irreversivelmente profissionais no estrangeiro que dificilmente regressarão ao país. A recriação de um tecido de pequenas empresas de construção é um processo lento, a que se junta o estádio ainda muito embrionário da construção industrial modular e estandardizada que poderia acelerar os tempos de construção e escalar a promoção de nova habitação, por reabilitação ou construção nova.

Um outro elemento do conjunto de medidas que foi de facto canhestramente apresentado foi a do arrendamento compulsivo pelo Estado de habitações devolutas para posterior subarrendamento, sem a preocupação de definir o âmbito do que se entendia por habitação devoluta e sem referência a quaisquer processos e prazos de tramitação. Sabemos que as políticas de habitação são hoje um elemento de profunda diferenciação dos projetos políticos. As forças políticas mais venerandas do mercado estão plenamente no seu direito de recusar instrumentos e soluções como o do arrendamento compulsivo em situações devidamente tipificadas no plano legal. O que rejeito plenamente é que essas soluções sejam abandonadas apenas porque a sua apresentação foi canhestra e mal preparada, como corre o risco de o ser neste caso concreto.

Em resumo, propor medidas sem atender às condições concretas em que a situação de partida, imperfeita e não desenhada conforme pretenderíamos que estivesse, deve ser transformada para chegar a bons resultados constitui uma espécie de passaporte para a ineficácia da sua aplicação. O que seria compreensível num governo inexperiente. Ora, embora acossado pela necessidade de apresentação de resultados porque o contexto de exigência mudou, o que não se compreende é que o governo de uma maioria absoluta não controle a agenda política e se sinta pressionado a apresentar medidas sem nelas trabalhar suficientemente para evitar falsos problemas.

 

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