sexta-feira, 24 de março de 2023

O FALSO DILEMA DOS BANCOS CENTRAIS

 

(Para os leitores mais picuinhas e interessados, uma representação pedagógica dos mecanismos através dos quais as subidas de taxa de juro pretendem controlar a inflação, reproduzida do texto de Bazelon e Singh citado neste blogue)

(A política monetária é um bicho estranho. Passa por longos períodos de adormecimento durante os quais não é discutida e é executada quase como de um autómato se tratasse. Por vezes, porém, as alterações de contexto são de tal envergadura que o bicho acorda e o debate reinstala-se, até à próxima soneca, sem que aparentemente tenha aprendido alguma coisa com o sobressalto. Nos últimos quinze anos, o tempo não deu para grandes sonecas. Primeiro foi a intervenção necessária na Grande Recessão de 2007-2008 com epicentro na instabilidade e ganância do sistema financeiro. Depois foi o período de adaptação a um novo paradigma de taxas de juro de equilíbrio praticamente nulas, que envolveu mesmo taxas de juro negativas em termos nominais para certas operações. A que se seguiu o choque pandémico. E agora o ressurgimento do fantasma da inflação. Com tanto sobressalto à mistura, esperar-se-ia mais pensamento estruturado para enriquecer o debate. Mas a precipitação dos acontecimentos é brutal. Assim, ainda há pouco tempo, Olivier Blanchard publicara uma obra chamada Fiscal Policy under Low Interest Rates (2022) que parecia querer devolver à política fiscal o comando dos processos de ajustamento e eis que o ressurgimento da inflação vem repor a política monetária pura e dura. Porém, a realidade é, por vezes, incómoda e aí temos de novo a política monetária a confrontar-se com a instabilidade (anunciada?) do sistema financeiro e a estar de novo no centro do furacão. Este post retoma o tema já que não o tenho visto discutido com seriedade no debate público, se é que ele existe. Em contrapartida, temos parlapatões inteligentes a falar sobre o que não sabem (como é infelizmente o caso do Eixo do Mal nas suas últimas edições, que me tem levado a dormir mais cedo às quintas-feiras).

A instabilidade financeira criada pela falência do Silicon Valley Bank e suas sequelas nos EUA e a compra forçada na Europa do aflito Crédit Suisse pela UBS, para lá dos desvios de gestão de cada uma das entidades, não pode ser desligada da emergência de taxas de juro mais elevadas após um longo período de taxas muito baixas, nulas ou mesmo negativas. Na ânsia de constituir aplicações financeiras suscetíveis de remunerar os depósitos que recebem, a subida das taxas de juro provocou uma descida de valor de ativos nos balanços dos bancos cuja expressão depende também do risco associado às tais aplicações financeiras dos bancos.

A ideia de um dilema para as autoridades responsáveis pela política monetária, os bancos centrais, começou a surgir em alguns comentários. Os bancos centrais viam-se, assim, obrigados, a optar entre continuar a sua via restritiva para controlar a inflação através da continuada subida de taxas  de juro de referência e com isso alongar a instabilidade ao sistema bancário ou a abster-se de uma posição tão restritiva para controlar a inflação começando a desacelerar a subida das taxas e assim poder, na lógica do seu próprio argumento, prolongar a incidência da inflação.

O meu ponto é saber se estamos perante um falso ou um verdadeiro dilema.

O tema tem várias abordagens possíveis.

Uma das saídas consiste em questionar se as causas da inflação recomendariam uma abordagem via política monetária restritiva. A lógica do argumento implícito na abordagem baseia-se no pressuposto de que na economia circula moeda a mais, decorrente seja dos passados processos do quantitative easing, seja dos estímulos fiscais para controlar os efeitos sociais da pandemia. Se perguntarmos a uma família a braços com as dificuldades da perda súbita de poder de compra para fazer face à sua vida regular, teremos um exemplo claro do que pode ser a contradição entre a visão macro e a perceção micro dos indivíduos. Essa família questionará: moeda (dinheiro) a mais? Mas onde está ela, seguramente não será nos nossos bolsos nem nas nossas contas bancárias. Essa família ainda mais baralhada ou revoltada ficará quando se aperceber que na sequência da tal via restritiva a sua situação real ainda poderá deteriorar-se mais, correndo mesmo o risco do impacto recessivo da medida poder roubar-lhe o emprego. Eu sei bem que não poderemos viciar a argumentação com a permanente exploração da contradição macro-micro. Até porque, em recessão, para justificar a despesa pública como meio de superação da crise criando procura eu terei de sobrevalorar o macro em relação ao micro. Como nos tempos da austeridade aqui repetidas vezes se afirmou, o argumento de equiparar uma família à macroeconomia no tema “não poder viver acima das possibilidades” é errado e é numa lógica macro que o defendemos.

Mas o problema existe e muitos economistas continuam a referir que a política monetária está claramente a subvalorizar as disrupções da oferta na explicação da inflação atual. Ao fazê-lo, a política monetária corre um risco de provocar um mal necessário às economias, restringindo atividade para controlar a procura global e a inflação, quando na base existiam fatores de oferta não resolvidos.

Mas a questão do falso dilema pode abordar-se ainda por uma outra via. A pergunta não é obviamente inocente: será a política monetária a via adequada para controlar a inflação? A resposta dos mais azougados defensores da abordagem será esta: a política monetária é a que está ao alcance dos bancos centrais e estes têm no seu mandato a estabilidade de preços e também a estabilidade do sistema financeiro. Mas a esta resposta poderíamos contrapor esta outra: mas onde é que está escrito que só os bancos centrais poderão combater a inflação?

Os economistas Simon Bazelon e Milan Singh, num post publicado no Slow Boring (1), tiveram a coragem de pôr o dedo na ferida que interessa tratar. Perguntam estes economistas por que carga de água o aumento das taxas de juro de referência se transformou na mezinha preferida para combater a inflação? O argumento de que existem vantagens em delegar nos bancos centrais a condução da política monetária, concedendo-lhes autonomia e independência para o exercer em pleno, não é razão nem suficiente, nem convincente. Aliás, em plena agonia da Grande Recessão não foram os próprios bancos centrais que vieram a terreiro, mui humildemente, que a sua ação estava a exaurir-se e que era tempo da política fiscal atuar?

O problema é que não existe (que pelo menos eu conheça, salvo algumas medidas indiretas de criação de Comités independentes) prática de delegação de política fiscal em organismos autónomos e independentes. É a ação dos Governos que entra em cena, existe conflitualidade política, depende da existência de maiorias nos Parlamentos e o melhor exemplo são os possíveis e impossíveis que Biden realiza para passar algumas medidas (Acts) no Congresso americano.

O que Bazelon e Singh vêm dizer é que, retirando a questão dos bancos centrais e da sua independência (mas também limitação de intervenção), a subida de impostos seria uma via mais direta e previsível maneira de controlar a inflação, já que a influência dessa subida sobre a procura global respeitaria melhor esses critérios de ser uma influência direta e previsível.

Os mecanismos através dos quais os aumentos de taxa de juro tenderão a refrear a atividade económica são mais longos e incertos, mesmo tendo em conta que a inovação tecnológica no sistema bancário e financeiro tende a reduzir os lags temporais de produção de efeitos a que política monetária está sujeita. Mas existem alguns aspetos extremamente paradoxais: por um lado, as subidas de taxa de juro não afetam apenas o consumo, penalizam também o investimento e esse é essencial para atingir aumentos de produtividade, sem os quais a política restritiva pode ser catastrófica; por outro, há setores como a construção civil muito mais expostos a esses aumentos e isso refletir-se-á na injustiça de criar mais desemprego em certos grupos de trabalhadores. A política fiscal pode tratar melhor os problemas de desigualdade, optando por impostos diretos ou indiretos (estes mais cegos em relação à distribuição do rendimento) ou trabalhando os escalões de IRS.

Nos manuais de macroeconomia que alguns de nós utilizaram quer como docentes ou alunos, pelo menos nos mais importantes, é por estas razões que se fala de policy-mix (monetária e fiscal). Mas como se antevê, este mix é mais difícil de gerir, já que combina ação do Governo e do banco central, este pressupostamente com autonomia e independência para controlar a política monetária. Não será por isso de admirar que o policy-mix esteja muito afastado da macroeconomia concreta, embora dele nunca tanto se tenha falado como quando os bancos centrais se sentiram impotentes para reanimar a economia em contexto de taxas de juro nulas ou negativas, já que nesse contexto não tem sentido descer taxas para animar a atividade.

Moral da história, talvez estejamos perante mais um falso dilema do que um verdadeiro dilema.

Esfuziante de confiança, Madame Lagarde não considera nem falso nem verdadeiro o dilema e segue a cartilha. Pode enganar-se. Basta sucederem-se alguns casos como o Crédit Suisse para disso tomar consciência, podendo vir a arrepender-se.

(1) https://www.slowboring.com/p/tax-increases-are-the-best-cure-for

 

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