(Com a devida vénia a Atif Mian, 1)
(O meu primeiro post sobre a falência do Silicon Valley Bank, SVB, que precedeu o alarido surgido sobre o tema na comunicação social portuguesa, abria caminho para várias das dimensões de reflexão ou pânico que o tema tem suscitado. Tal como noutros acontecimentos deste tipo, tenho por norma e padrão de conduta reflexiva ler quem sabe e quem vale a pena, fechando o caminho ao muito ruído que os parlapatões da nossa praça, com destaque para o José Gomes Ferreira da SIC e outros que tais que se pelam por analogias fáceis e outros truques, tendem a provocar. Assim o farei neste meu segundo post, que não contraria o meu anterior, e que tão simplesmente aprofunda algumas das suas dimensões analíticas, trazendo para a reflexão algumas perspetivas seguras de análise, convocando quem sabe destas coisas.
Começo por trazer para a reflexão a ironia de Noah Smith, convocando-a para anotar a contradição que podemos reconhecer existir neste mundo do financiamento dos start-up’s. Como referi no meu último post, o SVB estava irremediavelmente ligado a esse mundo, uma vez que recebia depósitos dos promotores desses start-up’s e a eles prestava serviços, designadamente de financiamento e de orientação de investimentos. Ora, como sabemos, esta população é avessa a toda e qualquer regulação e faz gáudio disso, influenciando por via do lobby todos os propósitos de desregulação existentes no sistema financeiro americano, que apareceu aprender as lições de 2008, mas que rapidamente as esqueceu, está-lhes na massa do sangue.
Curiosamente, o mesmo tipo de lobby que funcionava para a não regulação, funcionou e de que maneira para forçar a intervenção salvadora do SVB. Existe evidência de que a National Venture Capital Association com o argumento de que é aqui que a inovação acontece exerceu uma forte pressão junto da Secretaria de Estado do Tesouro para a intervenção salvadora. A Bloomberg (3) e o Financial Times (4) deram conta dessa pressão.
Como ironicamente Noah Smith o refere, ao contrário do que imaginariam, em que uma perturbação financeira menor seria esquecida e poderiam regressar ao seu normal “desregulado”, a situação complicou-se, também por sua própria influência, e assim os promotores e investidores de start-up’s passarão a um mundo de regulação, já que a economia americana não pode dar-se ao luxo de em plena luta anti-inflação aguentar um descalabro financeiro de natureza sistémica. A convicção desta gente segundo a qual poderiam viver num mundo à parte, ao sabor dos seus caprichos e idiossincrasias, é algo que sempre me impressionou, necessitando de um crash não ligeiro para se convencerem que assim não é.
Um outro peso pesado destas coisas, Lawrence Summers, refere também algo que é essencial para todo o sempre: “O SVB cometeu um dos erros mais elementares da banca – pedir emprestado a curto prazo e investir a longo prazo. Quando as taxas de juro sobem, os ativos perdem o seu valor e colocam a instituição numa situação problemática”. Tão simples como isso e dá origem a perdas de milhões. Várias notícias de ontem nos jornais americanos referiam ordens massivas de venda de ativos pessoais por parte do CEO do SVB nos dias precedentes à queda do banco. Eles lá sabem a armadilha em que estavam enrolados.
Mas a perspetiva que analiticamente mais me seduz é a que
insere este mini-contágio (um outro banco acaba de cair) no contexto de endividamento
elevado e baixas taxas de juro a que se segue rapidamente uma subida de taxas
de juro impulsionadas pela política de controlo inflacionário. A leitura mais
sugestiva que podemos encontrar nesta perspetiva é a de Atif Mian. Este
economista é um dos coautores de um dos mais importantes livros escritos sobre
a crise de 2007-2008, THE HOUSE OF DEBT (University Chicago Press, com Amir
Sufi), cujo sub-título era, curiosamente, ”Como é que eles (e você) causaram
a Grande Recessão e como é que podemos impedir que isso volte a acontecer”. Em 2018, a obra foi analisada neste blogue (2).
Os dois gráficos que abrem este post, sugeridos por Mian no Twitter, relembram-nos algo a que talvez não tenhamos prestado a devida atenção. Por um lado, a descida continuada das taxas de juro a 10 anos desde 1980 chegando praticamente a zero há bem pouco tempo. Por outro lado, a dívida total em percentagem do PIB americano ultrapassou os 250% do PIB, com destaque para o endividamento das famílias e do governo que roça já os 200% do PIB. Segundo Atif Mian, neste contexto relativamente recente, a subida das taxas de juro traz consigo um duplo risco potencial: o aumento de despesas de financiamento em balanços altamente endividados e o risco de que as subidas de taxas de juro implicam descidas consideráveis dos preços dos ativos. A situação mais complexa acontecerá quando os dois riscos possam mutuamente influenciar-se – descidas de valor acompanhadas de pressão de liquidez. Mian refere que não considera esta reflexão uma previsão, mas tão só um enunciado dos riscos inerentes à transição financeira sistémica em que a economia americana se encontra – fortemente endividada com taxas de juro praticamente nulas para taxas de juro elevadas.
Mas talvez possa acrescentar uma conclusão da minha lavra. Desiludam-se os puristas que imaginaram que uma Grande Recessão como a de 2007-2008 tenha representado um inequívoco capital de aprendizagem. A diferença entre sistema bancário e sistema financeiro continua a ser gigantesca, sobretudo do ponto de vista da presença e força da regulação. A ideia de banca sombra ainda não desapareceu. E os arautos da desregulação continuam vivos e atuantes.
Imagino também que a “relativa” proteção da banca europeia face a esta perturbação se deva a uma má razão: o financiamento de start-up’s europeu quando comparado com o americano é uma brincadeira de crianças.
(1) @AtifRMianhttps://twitter.com/AtifRMian/status/1634673684781715457
(2) https://interesseseaccao.blogspot.com/search?q=The+House+of+Debt
(3) https://www.bloomberg.com/news/articles/2023-03-13/svb-bank-failure-exposes-tech-s-venture-capitalists-to-huge-financial-risk?sref=wOrDP8KX
(4) https://www.ft.com/content/56a8df6b-3466-4524-9f02-16bc3276c580
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