(Noite grande na Casa da Música, como esperava. Entre o auditório Suggia da Casa e Grigory Sokolov existe uma química qualquer que não sei explicar, até porque o pianista russo com o seu rigor, sensibilidade e técnica ímpares não é propriamente uma figura carismática. Com a sua anatomia cada vez mais marcada por horas a fio ao piano, quando aquela personagem aparentemente vetusta e pesada se senta ao piano e, sem mais delongas, se atira ao seu repertório, cria-se um silêncio total, expectante, e parecemos vogar em toda aquela sensibilidade que ressalta daquelas notas, das quais Sokolov retira sonoridades difíceis de ouvir noutra interpretação qualquer. O programa de ontem anunciava na primeira parte algumas suites de Henry Purcell, escritas para cravo, com a curiosidade, que desconhecia, da música de tecla ser relativamente marginal na obra do organista na Abadia de Westminster e na Capela Real e do qual estamos habituados a ouvir música com uma maior monumentalidade de som. A segunda parte era dedicada a Mozart, com peças não propriamente tocadas com uma extrema regularidade, a sonata KV 333 (1783) e o adágio KV 540 este com a especial curiosidade, dizia-nos o programa, de ser a única composição de Mozart na tonalidade de Si menor.
A novidade do programa da primeira parte foi para mim total e ainda ando às voltas cá por casa a tentar desencantar nas estantes alguma intervenção pianística que me permita reouvir as suites e a chacone final de Purcell, relativamente às quais gostaria de compreender a individualidade interpretativa de Sokolov.
Quanto a Mozart e às peças tocadas foi mais fácil encontrar alternativas. Para a sonata KV 333 tinha cá em casa uma interpretação de João Pires num CD de 1989, de um lirismo que resiste bem ao confronto com a prestação de Sokolov. Quanto ao adágio, talvez a peça que mais me tocou no concerto, encontrei um CD de Richard Egarr, com fantasias, rondós e adágios de Mozart. E para um leigo que mede tudo pela sensibilidade musical percebi pela apresentação do disco que nesse adágio Mozart é considerado o igual de Schubert e assim compreendi a minha impressão.
Quanto ao programa, o leigo desenrasca-se procurando confrontos e novas interpretações. O drama é quando passamos aos encores e é nestes que a química entre o público que encheu a sala e Sokolov vai ao rubro. Assisti a cinco encores e pela informação do meu colega de blogue devo ter perdido o último. Mas onde está o drama? O drama está em que o leigo não consegue identificar as peças tocadas e fica assim sem referências para reouvir e apreciar a posteriori. Num país decente, haveria um jornal e um crítico especializado que comentariam o concerto, permitindo assim colmatar a ignorância do leigo. Isso é coisa que deixou de haver em Portugal e por maioria de razão no Porto. Assim sendo, ficou a química, mas também uma grande sensação de vazio por não identificar os encores e assim não poder prolongar o prazer deste concerto magnífico.
Talvez aleatoriamente, com idas furtivas às estantes dos CD’s ou numa revista perdida encontre a saída. Seria magnífico.
Nota complementar:
No Facebook encontrei uma nota de Henrique Dória, com a referência a que os encores começaram com Schubert. Já é alguma coisa. E uma referência no You Tube com Sokolov a tocar Purcell: https://www.youtube.com/watch?v=qpbpZLgX0kQ.
Nota adicional redigida em 25.03.2023
Petinencio-me por ter falado antes do tempo. O Público publicou hoje uma nota crítica sobre o concerto de Sokolov, com explicitação das autorias dos encores tocados. Ainda bem e a crónica da crítica Diana Santos é ótima e esclarecedora.
Sem comentários:
Enviar um comentário