sexta-feira, 17 de março de 2023

A GRANDE REDISTRIBUIÇÃO

 


(Estava eu ontem empolgado pela proeza do Sporting em Londres, sim sou um SLB compreensivo que sabe reconhecer quando os nossos adversários se superam na excelência, quando alguns minutos apenas da superficialidade e javardice do Eixo do Mal me convenceram a dormir mais cedo do que o esperado. É confrangedor ver gente inteligente a ganhar a sua vidinha falando do que não sabe, quando pouco antes na CNN Francisco Louçã tinha realizado uma intervenção profundamente segura e pedagógica sobre as questões da inflação e da nova e recorrente instabilidade do sistema financeiro americano e também do europeu, como a intervenção no Crédit Suisse sugere. Daí ter dormido sobre o assunto, para atenuar a irritação que a patética discussão do Eixo do Mal me provocou. E aqui está uma reflexão sobre a inflação e quejandos, sobretudo sobre o que pode ser uma intervenção contraditória e desajustada para a combater.

O caos sobre a explicação dos fatores impulsionadores da inflação em Portugal está instalado. Com a exceção mais saliente dos assisados escritos de Luís Aguiar-Conraria, incluindo o seu artigo no Expresso de hoje, a generalidade do que tem vindo a público é um conjunto anárquico de bolas fora. Para este caos, muito tem também contribuído a ausência de reflexão capaz do universo governamental para colocar alguma ordem e orientação em debate tão mal-amanhado. Não haverá pelos gabinetes de estudos do Ministério da Economia e do Ministério das Finanças gente capaz para trazer alguma informação lúcida ao debate em curso, contribuindo positivamente para dele afastar os amadores mais ou menos provocadores? Compreendo que denunciar o populismo revanchista instalado neste debate seja necessário, mas fazê-lo com argumentação tão superficial e canhestra como a que os painelistas do Eixo do Mal ontem nos apresentaram, diria que se trata de uma nova forma de populismo.

No seu já anteriormente referido artigo de hoje no Expresso, Luís Aguiar-Conraria é o único a distinguir duas coisas: uma coisa é o preço anomalamente elevado que os serviços apresentam em Portugal (à Paridade de Poder de Compra e tendo em conta que entre nível de desenvolvimento económico de um país e o preço relativo dos serviços existe uma relação bem estudada pelos economistas) e onde obviamente a distribuição se encontra, mas também as telecomunicações, por exemplo; outra coisa bem diferente é utilizar erradamente as razões que explicam essa anomalia para tentar compreender quem responde mais pela inflação em Portugal. Quanto às razões para essa anomalia, sabemos que o preço de alguns serviços não reflete como deveria normalmente refletir o padrão de remunerações em Portugal; fenómenos de concentração monopolista e oligopolista explicam essa anomalia, respondendo por margens brutas (mark-up) produto de um poder de mercado que tais estruturas ajudam a construir.)

Sou obviamente a favor de monitorizar com rigor e atenção as variações de preços registadas ao longo da cadeia alimentar, da produção primária ao consumo final. E não me espanta de todo que os preços na produção estejam a variar acima da observada noutros pontos na cadeia (a informação INE mais recente evidencia esse registo). Por um lado, há um conjunto diversificado de registos ocorridos (climáticos, crescimento de preços de fatores de produção e não apenas os da energia, fenómenos mais ou menos pontuais) que pesam sobre as variações de preços, agravadas posteriormente por problemas de organização e capacidade empresarial (quanto mais baixa a inovação tecnológica e organizacional no setor primário maior a probabilidade de tais disrupções tenderem a aumentar mais que proporcionalmente os preços, caso tenham poder de mercado para o fazer). Mas, além disso, temos de considerar o contexto conhecido de um longo período de rebaixamento de preços que a grande distribuição tem imposto aos produtores primários, induzido pelo seu enorme poder de mercado. O período recentemente atravessado de disrupções nas cadeias de fornecimento de consumos intermédios à produção primária é propício à tentativa de recuperar parcialmente dessa subserviência na determinação das margens da produção.

Por conseguinte, ainda que não ignorando o sinal que a informação INE nos dá alertando para a subida dos preços na produção, honestamente espero para ver informação mais pormenorizada sobre variações de preços ao longo da cadeia para formar uma perspetiva simultaneamente mais informada e equilibrada das anormalidades da nossa inflação.

Mas o que me interessa fundamentalmente trazer para este post é o significado global da inflação e as possíveis contradições que a generalidade dos bancos centrais estará a mal gerir, combatendo a inflação com uma política restritiva de castigo e punição do consumo dos mais pobres e desfavorecidos.

Não é necessário ter conhecimentos de economista douto e experimentado para compreender que a inflação é sinónimo de GRANDE REDISTRIBUIÇÃO. Basta estar atento à informação que nos chega para compreender que às dificuldades reais de quem vive do trabalho e de quem não tem poder para repercutir na sua remuneração (generalizadamente baixa) o aumento dos preços do que costuma comprar se contrapõe a divulgação também generalizada de que um conjunto vasto de empresas e organizações apresenta por estes tempos lucros francamente acima do panorama dos últimos tempos. O que nos chega, talvez de forma impressiva para muitos de nós, é a demonstração de que, como aliás sempre acontece, a inflação equivale a uma profunda redistribuição do rendimento entre grupos com poder de mercado muito desigual. Por um lado, temos os fenómenos da “uberização” (precariedade) e da queda a pique da sindicalização da população ativa empregada a provocar a diminuição mais ou menos abrupta do poder de mercado de quem trabalha (pode dizer-se que pelo menos parte dos sindicatos “vende” mal a sua função e contribui para essa alienação de influência). Por outro lado, temos a concentração empresarial com a formação de conglomerados empresariais e formas agressivas de organização monopolista e oligopolista, a que corresponde também, em alguns países com relevo para os EUA, a criação de monopsónios de procura de trabalho (concentração na procura de trabalho que desequilibra a relação de barganha salarial).

Resumindo, subjacente à agressividade da inflação temos um processo intenso de redistribuição do rendimento, à qual a fiscalidade reage tardiamente. Ora, neste contexto o que temos instalada é uma política monetária restritiva, subindo taxas de juro de referência, que parte do princípio de que nas economias existe uma procura global excessiva que tem de ser domesticada, puxada para baixo. A contradição instalada não pode ser mais kafkiana. Excesso de procura global não obviamente provocado por quem vê a galope o seu rendimento perder poder de compra. Além disso, são amplamente conhecidas as origens de inflação que se prendem com disrupções de produção e nas cadeias de oferta, as quais obviamente não se confundem com excessos de procura global.

Pode compreender-se que, devido ao facto do estímulo fiscal anti-pandémico americano ter sido muito generoso e ao não dispêndio imediato desse rendimento, a economia americana pode ter vivido um clima global de prolongamento de tensão de procura, sobretudo após a pandemia ter sido controlada. O mesmo não poderá ser dito na Europa e sobretudo em Portugal, em que o conservadorismo fiscal anti-pandémico foi saliente, como aliás o ministro Medina gosta de nos recordar.

Isto significa que a terapia anti-inflacionária está dirigida a um grupo de sintomas que não generalizados nem dominantes entre as economias pacientes. A inflação já redistribui o rendimento como sabemos. As políticas restritivas acentuam essa redistribuição. Mas ao mínimo sinal de perturbação do sistema bancário e financeiro os governos injetam dinheiro e os bancos centrais vão atrás.

Se isto não é sinal de esquizofrenia, esclareçam-me por favor.

Por isso, arriscaria a dizer que sendo a sensibilidade social dos bancos centrais igual a zero, a probabilidade da punição restritiva da política monetária ser diminuída dependerá da generalização de casos de instabilidade e perturbação financeira. Porque nesse domínio, a sensibilidade dos bancos centrais é total e à prova de bala.

 

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